Papel de mãe
O carro estaciona em frente ao portal envidraçado. Daniel é o primeiro a desembarcar, carregando uma sacola de lona abarrotada. O pai desce do outro lado, com as chaves nas mãos. O filho o segue em direção ao porta-malas. Descarregam juntos uma grande mala quadrada, com rodinhas nas extremidades. A mãe permanece imóvel no banco da frente, atada ao cinto de segurança, com a bolsa sobre o colo. O marido faz sinal para que ela desça. Daniel abre a porta do carro e estende-lhe a mão, com gentileza.
─ Tens certeza de que não queres marcar agora a passagem de volta? ─ Ela insiste, enquanto firma o salto fino do lado de fora do carro.
Ele já avisara que estava disposto a descobrir um novo modo de vida naquele continente, de viver novas experiências pessoais e profissionais e que, portanto, não havia uma data específica para o retorno.
─Tudo bem─ diz ela, preparando o contra-ataque. ─Mas e se gastas todo dinheiro que tens? Vais ter de pedir de novo ao teu avô. Sabes que ele vai querer te controlar.
Daniel gagueja, mastiga o ar.
─ Vamos ─ O pai interrompe, de propósito. Ele dá o braço à esposa e caminham à frente de Daniel, arrastando a mala.
─Não é certo podares as asas do teu filho. Deixa que ele voe ─ murmura ao ouvido da mulher.
Ela insistia com o marido que aquela não era uma simples viagem. Mencionava a estranha doçura nos gestos do filho, a fala ponderada dele. Lembrava que, desde cedo, Daniel não perdera a paciência com ela por um segundo sequer. Ouviu-a com atenção durante o almoço, deu palpites sobre a reforma da casa, elogiou-lhe a foto no panfleto de campanha para o governo do Rotary Clube. Mais tarde, abraçou-a demorado.
─Deixe disso! ─ adverte o pai. ─É claro que ele volta para o Brasil. Isso é coisa de guri afoito─ diz com convicção.
Com o avô, Daniel também agira diferente. Fora atencioso. Conversaram ao telefone por mais de meia hora. O neto o convencera a evitar a vinda ao aeroporto em Porto Alegre. Com a voz embargada, o avô conformou-se, despedindo-se com um comovido: “Adeus, meu filho. Te cuida”. E uma quantia razoável depositada na conta do neto.
O zumzum do saguão mantém Daniel alheio à conversa dos pais. O barulho dos aviões, os grupos de pessoas tagarelando. Um homem de terno com um bottom de partido político na lapela cumprimenta o pai de Daniel.
─É nosso deputado federal lá de Novo Hamburgo ─ explica o marido à esposa, que abre um sorriso amistoso e retribui o cumprimento do político. Os três conversam enquanto Daniel faz o check-in. Os auto-falantes anunciam o embarque do vôo JJ 3054. O deputado segue para o portão no qual uma enorme fila de passageiros vai sendo formada. Entre eles, um grupo de velhinhas que cochicham em tom animado e uma grande quantidade de adolescentes barulhentos, provavelmente curtindo as férias de julho. Daniel sente-se aliviado em não estar naquele vôo. Quer tranqüilidade para dormir ou ler um pouco durante a viagem.
Papéis em ordem. Passagem no bolso de fora da sacola. Porto Alegre/ São Paulo, São Paulo/Londres. Uma única escala em Guarulhos. Chocolate quente com chantilly e cereja em cima para Daniel; dois capuccinos para o casal. O pai promete mandar ao filho a nova camiseta do colorado, com a tríplice coroa. A mãe repassa instruções de emergência. Rememora o caso do jovem porto-alegrense encontrado morto em Londres; emenda a história de Jean Charles, assassinado pela polícia britânica ao ser confundido com um terrorista.
─ Chega, mãe!─ grita Daniel, agora com a rispidez característica. Não vai acontecer nada ─ decreta, com o dedo em riste em plena cafeteria.
Ela reivindica o direito de preocupar-se, de apegar-se ao filho primogênito que está para deixar o país. Daniel segura firme as mãos dela. Reitera: ─Não vai acontecer nada. Fique calma─ A voz dele sai mais tranqüila. Bebe um gole do chocolate. O pai ergue a xícara. A mãe se resigna, acompanhando o marido.
─Um brinde ao teu futuro, meu filho─, ele brada. Daniel ergue a caneca.
O sistema de som anuncia o portão para o qual ele deve seguir. Abraçam-se. Reúnem-se por alguns segundos, cabeças encostadas. Daniel se desvencilha. Apanha a sacola do piso. Agarra a alça da mala. Respira fundo. Caminha firme pelo saguão.
─Juízo, hein, meu filho?!─ Grita o pai. A mulher treme, com a cabeça recostada ao peito do marido.
─Vai com Deus─ ela murmura. Os dois ficam parados, de mãos dadas. Prendem até o último minuto, a imagem do filho, que desaparece na multidão.