Quando Deus dá a farinha

Cozinhava. Pra si quase sempre. Pra servir aos amigos vez ou outra. Não que fosse um exímio cozinheiro, mas era caprichoso. Pesquisava, experimentava receitas, andava longe à cata de temperos raros e iguarias pouco comuns em nossos tempos, pela escassez ou simplesmente em razão da mudança dos costumes. Sabia por experiência de vida que tudo que se faz pelo gosto de fazer tende a ficar bem feito. Cozinhar era mais que um meio de criar as condições de suprir a necessidade natural da nutrição, era um prazer, uma forma de relaxar, de abrir uns parênteses no meio da rotina esmagadora, destruidora da alegria de viver. De esquecer os desencontros e, sobretudo os encontros indesejáveis.

Não abria mão do equipamento adequado e na sua cozinha doméstica investia sem reservas, a falta de facas afiadas que possibilitassem os cortes perfeitos nas carnes e legumes o desgostavam profundamente. Mas naquela tarde quase noite estava na cozinha da casa de campo de um amigo, adiantando o jantar da turma que chegaria logo mais. Cozinha alheia é aquela coisa. Tinha de adivinhar onde estava tudo. Era sexta-feira e adejavam sua mente cansada as imagens de uma semana de trabalho com todas as inquietações advindas de uma ocupação que não lhe dava as alegrias nas quais acreditava quando se candidatara à vaga. Onde é que estariam as facas? Não pensou que haveria tantos impeditivos no caminho de quem deseja fazer o que acredita ser o melhor. Pronto! Ali estavam as facas. Passou o polegar pelo fio de cada uma constatando que estavam todas cegas. Voltou a abrir gavetas em busca de um afiador.

Havia uma vantagem. O caseiro antes de sair lhe mostrou a horta dizendo que ficasse à vontade para usar o que desejasse. Seus olhos brilharam com a visão dos canteiros de temperos. Salsinha, cebolinha, coentro, manjericão, orégano... Quase tudo que se imaginasse. Ali ao alcance da mão, rebrilhando de frescor sob a ação os aspersores generosos. Nada! Nem uma lima, ou uma pedra que fosse. Facas de qualidade. Daquela marca fodona. De que adiantava? Saiu ao terreiro à procura de uma beirada de cimentado qualquer. Quem não tem cachorro... A todo momento esbarrava com o demônio da burocracia, sorrindo a ver como o tempo se esvai, perdendo-se em formulários, relatórios, protocolos, vibrando ao som cavo do carimbo de indeferido no requerimento sobre o tampo da mesa... A mesa era grande, rústica, de madeira de lei, com oito lugares, o balcão da pia em granito, o fogão com queimadores de pressão, a churrasqueira de tijolos à vista com espetos giratórios. A picanha e a alcatra já temperadas, mas as facas estavam cegas.

Quando Deus dá a farinha o diabo rasga o saco, a mãe dizia em situações tais. Na sua cabeça veio a imagem de uma garrafa transparente cheia de grãos de milho e as galinhas metendo inutilmente o bico contra o vidro. Era assim que se sentia lá no trabalho. Era assim que se sentia com aquelas facas cegas na mão.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 19/12/2017
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