O menino é pai do homem ?

O menino é pai do homem?

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos, ...

FP – Álvaro de Campos

Terceiro de quatro filhos, o garoto, após vagar pelas casas de certa parentalha, passou boa parte dos primeiros sete anos de sua vida num dos morros da Cidade Maravilhosa, que não reduz, caro leitor, suas potencialidades às belezas naturais. Fora entregue, por seu pai, a uma senhora para que o criasse, pois o primeiro já tinha responsabilidades com sua família, a matriz, e a mãe do menino sofria de transtornos mentais, o que lhe impedia de cuidar da criança.

Não chegou a passar fome, aprendeu as primeiras letras, não foi alvo de pedofilia e nem sofreu violência doméstica, além de alguns cascudos esporádicos. A mãe postiça cuidava e protegia a criança como podia.

Discrepante nessa aventura de primeira infância era o ambiente sociocultural que ia alimentando o espírito em formação recém chegado. Afora a carência material, simbolizada pela ausência de cama para todos, pois o garoto dormia em cadeiras, que eram postas juntas e reorganizadas pela manhã, destacava-se o conjunto de atitudes comportamentais. Ainda que todos se dessem bem, era muito comum chamarem-se, adultos, cujos xingamentos carinhosos não poupavam crianças, de “cara de tabaca”, menção ao órgão genital. Quando no quintal, as mulheres lavavam roupas ao tanque, bastava abrir as pernas e resolver ali mesmo a necessidade de urinar. O alimento, com farinha ou farofa, à medida que se tornava massa pastosa, dava forma a pequenos bolinhos que eram levados à boca pelas mãos. Essas eram vivências experimentadas sob o manto de uma religiosidade eclética, que misturava catolicismo, umbanda e candomblé, com experiências práticas em cada uma delas.

Passados sete anos, vividos com carinho e a liberdade natural das samambaias e animais domésticos, a criança, junto com três irmãos e a mãe, exceto o pai, que já havia morrido, foram para o Nordeste morar com uma irmã mais velha da progenitora incapaz. A primeira, mulher solteirona e à beira dos sessenta anos, sofria de hipertensão e diabetes, ingredientes que, ativados pelas traquinagens e novas responsabilidades, a tornavam uma pilha de nervos. Pouco tempo depois da chegada, o arremedo de família foi decomposto, o garoto permaneceu com a velha tia, e a mãe veio a falecer num hospital psiquiátrico.

Mais alguns anos se passaram, que, somados aos da primeira infância, totalizavam um pouco mais do que os que Jacó serviu a Labão, e eis o garoto adolescente. Não foi nada fácil o trabalho da velha , alimentar, dar remédio, vestir, lazer, escola e, sobretudo educação, pois o garoto, até então, vivera como as plantinhas, livre e sob comando dos próprios instintos. Disso é de se supor a forte reação que a velha sofria quando contrariava os hábitos da primeira infância, aliados aos que surgiam em abundância, frutos das amizades e do frenesi hormonal.

Seria injusto atribuir-lhe a pecha de menino diabo, mas esteve longe de ser santo. Decerto, não foi delinquente, mas flertou com a semidelinquência, pelas brigas em gangues de bairro, vandalismo, transgressão do sossego público, e, por um triz, não enveredou para o mundo das drogas ou da promiscuidade sexual. Esteve à beira desses submundos, ao mesmo tempo em que frequentava as “melhores” escolas e ambientes sociais, familiares e extrafamiliares. Na escola, apesar de nunca ter sido reprovado, o aproveitamento era péssimo e a aprovação sempre se dera aos trancos e barrancos, tanto é que não permaneceu em nenhuma escola por que passou. O comportamento escolar, à parte certa dose de cabulação, não era dos piores. O problema era a aprendizagem, pois nada era minimamente compreendido. Não fossem as aulas particulares de linguagem e matemática ministradas pela velha tia doente, à base de fartos beliscões e puxões de orelhas, talvez a capacidade de aprendizagem do garoto sofresse comprometimento definitivo.

Adolescente formado, apenas biologicamente, mas sempre atormentado por medos e inseguranças em razão do que lhe dizia a velha tia acerca das dificuldades da vida, o rapaz voltou para o Sudeste, onde deveria conseguir trabalho e virar-se na vida, pois a velha estava no seu limite, tanto é que dali uns doze meses faleceu.

Gentilmente acolhido por sua irmã cujo marido foi muito compreensivo e generoso, o que o livrou de grandes transtornos pessoais, o rapaz arranjou trabalho e deu continuidade aos estudos, mas sempre com as dificuldades anteriores, pois nada conseguia aprender, provavelmente porque seu patrimônio escolar resumia-se às quatro operações matemáticas e alguns outros parcos conhecimentos de matemática, adquiridos em escolas profissionalizantes. Contudo, auxiliado por algumas pessoas e oportunidades, fez carreira mediana no ramo técnico da área de engenharia mecânica, além de dedicar-se às atividades político-sindicais.

Depois de casado e com família constituída, já com mais ou menos vinte e oito anos, nosso viajante resolveu voltar aos estudos num curso superior de Engenharia de Produção, o que mais uma vez denunciou sua completa indigência intelectual acerca dos conhecimentos mais elementares que devem ser aprendidos nos bancos escolares. Não se fez de rogado, pegou nos livros e pôs-se a estudar com vistas a poder acompanhar o que seus professores ensinavam, mas não foi dessa vez, pois logo abandonou o curso por falta de dinheiro.

Tudo parecia um beco sem saída. A promessa não se cumpriu: o socialismo não veio, a profissão dava sinais de esgotamento, e, além da falta de dinheiro, a vida seguia entediante. Nessa época, certo colega seu, mais velho, experiente e bem-formado , disse-lhe que precisavam estudar mais para poderem compreender a realidade. Seguindo a sugestão do companheiro de orientação política, o viajante começou a preparar-se para o vestibular, repetido três vezes até que conseguisse ingressar num curso de Letras. A preparação foi trabalhosa e o vestibulando percebeu suas dificuldades com o vernáculo: escrevia pessimamente, oralizando na escrita e cometendo as gafes mais elementares, apontava a esposa do colega que lhe sugeriu a volta aos estudos.

Nessa busca do tempo perdido, embora não fosse um burguês, poderia ser confundido com o monsieur Jourdain de Molière, ou mesmo um burro teimoso que insistia com o impossível. O fato é que nesse período, o estudante retardatário, assim como Riobaldo, quase que nada não sabia, mas desconfiava de muita coisa, bem como, já bem antes, sabia que viver é perigoso.

Deslumbrado com o curso que começara, o calouro retardatário, agora com mais ou menos trinta e dois anos, estudou com afinco e desbravou terrenos pedregosos de sua ignorância. A tarefa não foi simples, como sempre, visto que, acima de tudo, a maior necessidade era a da autoavaliação e reconhecimento das dificuldades, que iam das mais banais às mais complexas. Por exemplo, acentuação era um problema, e a professora, numa galhofa carinhosa, sempre o cobrava: O fulano gosta de pôr acento em portuguêsa. Sintaxe então, era um verdadeiro monstro, que amedrontava muitos, mas aterrorizava o universitário novato.

Passados dez anos de curso, o ex-menino quase-diabo ingressou no magistério e tem aprendido, ainda que beirando as sessenta primaveras, muitas coisas interessantes, sobretudo o fato de que o objeto de estudo chamado homem, tanto no campo científico como no senso comum, adquire consistência apenas quando observado sob suas circunstâncias. Não se trata de questão humanista, não, mas de percepção da realidade objetiva, que é fonte inesgotável de possibilidades negativas, mas também positivas, e não cabe em manuais burocráticos de comportamento, diagnóstico, aspectos meritocráticos.

Vai bem?! Muito além da inteligência prática utilitarista, dos manuais de boas condutas ou dos alfarrábios acadêmicos, o professor quase-ancião percebe que essas histórias de self made man ou Super Homem são elucubrações, bobagens que servem tão somente para acariciar egos e proliferar individualismo, combustível do mar de frustrações, recalques, ressentimentos e quetais. Como ele diz: por trás da superação do mais alto grau de dificuldade de existência, que não é o seu caso, consta, num grãozinho que seja, uma oportunidade, uma atitude generosa de outrem.

Dez. / 2017

Ffily
Enviado por Ffily em 04/01/2018
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