Salvação

Deixou os séculos a que estava condenado e lembrou se de que certa vez um sapo lhe salvara.

Um sapo e sua pele asquerosa invadira a privacidade de seu espaço, sua casa, e pediu-lhe um amor que quase ninguém pode dar. O nojo então deu lugar a ideia de que amar a um sapo, querê-lo em sua feiura é o mais verdadeiro exercício de amor. O sapo não tem culpa por carregar sua pele, assim como ele não tinha de carregar as espinhas e cicatrizes, asqueroso também. Ele e o sapo nivelados tornaram-se naquele instante recíprocos.

Ao fixar seu olhar de encontro aos daquele anfíbio se reconheceram. Ambos fora de seu espaço natural e cada um pedindo ao outro uma espécie de salvação silenciosa, experiência essa que durou tão pouco e assim impossível de percebê-la. É o que se chama de desconforto.

Ele pensa saber o que é, mas por pouco se perde na entrevista com o sapo que também o encara, sem perceber-se sapo, assim como uma cobra não sabe o que é. No fundo ele é na verdade vazio e egocêntrico e o sapo a expressão da liberdade.

Entretanto se distrai de todo esse peso e resta as banalidades, uma conversação dessas “de transcendência” lhe exigiria muito, não tinha tempo para isso e quem o tem? Nesse movimento apega-se ao fato: a repulsa que a pele do sapo lhe provoca.

A pele do sapo está a contaminar o seu mundo e a sua presença ali lembrava tudo o que pior a vida poderia ser: o sapo era o desconforto da vida.

Só o que é belo nos faz esquecer que um dia tudo se acaba e aquele sapo ali não contribuía. Ele não era o sorriso de Monalisa ou a imitação clássica da natureza.

Ora ele a vida batendo a sua porta! A ninguém é permitido somente desfrutar do que é belo. Existir tem seu preço. O sapo poderia não saber de si, mas ele... Mas não ia pensar nisso, não tinha de pensar nisso tudo, afinal tudo estava em seus pelos ouriçados e no estremecimento causado pela presença daquele ser. Tinha de ser pratico senão poderia perder-se. Tinha de se livrar do anfíbio, o que se resumia no esforço de tirá-lo dali, sem machucá-lo.

Zangava-se, afinal por que a vida era tão cruel com ele, quase que vomitando todas essas reflexões desagradáveis?

Tocar o sapo seria fulminar-se, seria tocar o mistério da vida e isso poderia ser desagradável.

Fez uso da vassoura e dirigiu o sapo até a saída de sua casa, para não dizer de sua vida.

O sapo era a vida e era preciso abraçar a vida. É preciso abraçar a vida. Mas como se temia tocá-lo. Chegou a conclusão que a sua expiação era amar o sapo, amar aquilo que não era belo, amar assim a vida. Amar o que não se pode amar provava a si mesmo que a vida era bela em seu mistério. Se livrara do sapo e salvara a si mesmo.

Sérgio da Luz
Enviado por Sérgio da Luz em 09/01/2018
Código do texto: T6221603
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