Ósculo

Ósculo

“A vida fica muito mais fácil se a gente sabe onde estão os beijos que precisamos”.

Mario Quintana.

Sim. Ela podia confessar e declamar que beijos a deixavam em estado quase imoral de excitamento. Pode parece estranho, mas beijos para ela eram o descortinar da alma, algo tão íntimo que só dois corpos que sabiam o que viria depois podiam compartilhar. Nunca acreditara muito em seu poder de atração, mas sabia que seu jeito simples, seu rosto delicado, os olhos vivos e a pequena boca emoldurada por lábios convictamente sensuais compensavam as suas formas avantajadas. Ela odiava lembrar-se disso. Tivera na adolescência terríveis problemas de imagem que compensava com sua ânsia de ler e o desejo de conhecer todas as formas do mundo, sabia que em algum tempo todas as suas esperanças poderiam ser atendidas. O destino sempre fora surpreendentemente fácil de ser entendido e tão difícil de ser compreendido. Tanta coisa ela poderia entender sobre si mesma apenas fechando os olhos e deixando-se divagar sobre sua condição de mulher. Primogênita em uma família conservadora e sem grandes apegos a religião, ela sempre soube desde que se entendera por gente, que não existiam templos que se comparassem a ela mesma enquanto corpo, casa e forma, e fé que se comparasse a vida livre, ao majestoso luar, o toque cru da terra molhada sob seus pés, a liberdade que um mergulho no rio lhe conferia, o sabor do vento contando-lhe segredos divinos e o calor do Sol que sempre a acarinhava depois de alguma tristeza. Ela sabia que nada poderia ser mais importante que seu desejo de ser livre e poder sentir o mundo como seu coração desejava. Sim, beijos a deixavam excitada. Descobrira isso bem cedo nas brincadeiras de criança onde salada mista sempre terminava em um abraço e um beijo roubado. Os beijos para ela eram como o fio condutor que levava eletricidade diretamente de um coração a outro, sem escalas, sem atalhos e sem culpas. O beijo poderia ser comparado a um eclipse: fundido, íntimo, clonal, e universalmente incompreendido. O beijo não representava apenas o desejo carnal e por isso mesmo era quase um tabu. Ela sabia que o toque labial era a busca implacável pela satisfação sexual, por mais que soubesse que ele tinha milhares de conotações distintas. Beijos por mais inocentes que fossem sempre a fizeram feliz. Sua memória afetiva era capaz de lembrar-se de quase todos eles, desde os parcos beijos de sua mãe e pai, ao primeiro beijo roubado no portão da escola, e por fim aquele que fora sua perdição eterna. A inocência era a mais cruel das verdades, e a sua sempre beirou a mediocridade, de tão simples. Mesmo que tentasse, e mesmo tanto quanto o tempo lhe trouxera experiência e maturidade, a sua inocência pungente e inacreditavelmente despojada de malícia lhe conferia um ar infantil e doce, a sua falta de maldade era parte latente de sua natureza. E um dia, como deveria ser, ela conhecera o verdadeiro caráter do beijo. O beijo seria assim a sua mais letal fraqueza, um caminho de ida sem volta ou simplesmente de mão dupla. O evento tornara-se um divisor de águas, uma torrente de sentidos e vontades que tornaram tudo mais vivo , verdadeiro e humano. O beijo seria sempre seu eclipse. Beijos poderiam ser pequenas vitórias e ilhotas de alegrias, glaceadas de experiência e amor. Seu mundo era pequeno, porém doce e suas vontades transmutavam como sentidos em dimensões opostas e o mundo naquele ato mal cabia nela. Amar não era fácil, nunca fora fácil. O amor poderia ser miudinho comparado a tudo que desejava sentir, mesmo que a sua idade, aos olhos do senso comum, não fosse adequado. Beijar era alegria, contentamento, êxtase, e tristeza também. O beijo encenava uma pintura impressionista, onde cada pontinho de tinta explodia como um Sol amarelo ungido de calor e força. O beijo era como uma teia de aranha que a medida de sua tecedura envolve o par em um universo paralelo tão pessoal que nada mais importa. Beijar sempre fora infernalmente divino. Ela fechou os olhos e deixou-se perder novamente.

Lady Malibe.

23.01.2018