O Banco

Aquele inverno estava rigoroso. Talvez porque seu corpo já estivesse muito cansado e seus ossos já não suportassem mais torturas. Na verdade, não era o corpo o que mais lhe doía, mas a alma. E a dor d’alma é a mais difícil de se curar, quem dirá mensurar. Sentia que a alma estava consumida por uma lepra, que a fazia nociva até para si mesma.

Mas ela continuava, imutável. Que poderia ela fazer?

Era uma típica manhã gélida de inverno. O sol se escondera como criança que brinca, inocente de todo mal que há nesse mundo. O vento, em compensação, cortava a todos como uma guilhotina impiedosa. Ela acordou às seis horas, e como era de costume não tomou seu desjejum, pois dizia não acordar com fome. Quem não acorda com fome? Enfim, trocou-se com toda a coragem que se espera de uma pessoa em plena manhã de inverno. Saiu. Sim, obviamente estava atrasada, visto sua coragem matinal, mas hoje ela não corria para chegar ao ponto de ônibus.

Andava como que à deriva, passeando por entre a paisagem que todos os dias percorria – e que só agora percebera nunca ter apreciado. Cada som, odor, árvore, casa, apresentou-se como uma nova descoberta, maravilhando-se a cada latido de um vira-lata qualquer que interrompia sua digressão.

Sua vida tornara-se tão pesada, tão alheia a si mesma, como pudera deixar-se levar por seu suntuoso charme, sem ao menos observar o que se passava à sua volta? Quando foi que deixou-se permanecer no meio de tantos compromissos, que lhe roubaram a simplicidade de ver o que realmente importa?

Continuou. Continuou até não mais pensar. Cada novo passo a conduzia a um caminho desconhecido, todos os dias percorridos, rumo a não se sabia o quê. Porém, agora, sentia-se mais preparada para tudo quanto ainda não vivera, como se agora enxergasse limpidamente os mistérios que outros não ousaram conhecer, desvendar. Passara toda a sua vida voltada para os cálculos e fórmulas, era contadora de um banco, e agora, todos os seus pensamentos simbolizam um único número: 8, como infinito de sua própria felicidade.

Vivera trinta e quatro anos, entre viagens, estudos e o trabalho no banco, todavia foi numa manhãzinha de julho que descobriu a alquimia. Incrível nossa capacidade de, às vezes, conseguirmos encontrar refrigério em lugares inimagináveis, lugares que de tão comuns fazem-se especiais para nós.

Sentada agora naquele banco de praça, que já acolhera tantos outros coitados, talvez um casal de namorados, um avô observando seu netinho andar de bicicleta, um andarilho que só procurava o descanso momentâneo, e ela - que não sabia para aonde ir, ou se ficaria ou não - mas que naquele momento, fizera daquele banco, seu objeto de desejo incondicional.

Sentiu que aquela paz trouxera um sono incontrolável, podia voltar para casa, mas permaneceu ali. Deitou. Dormiu o sono, não o dos justos, mas dos insanos – assim pensaria se visse alguém em tamanha degradação. Mas já não se importava com essas formalidades, sentia-se livre, os seus demônios estiveram por tanto tempo presos dentro de si, que agora se rebelaram de maneira fugaz. Impossível impedir.

As horas foram passando. Acordou. O vento açoitava-lhe a face, mas não mais que os olhares desaprovadores dos transeuntes. Olhavam-na como se fosse uma aberração, um absurdo alguém nesse estado! Mas ela não se importava.

Talvez fosse melhor assim, o comum é necessário – e fora por tanto tempo tão comum... Mas são os insanos que fazem o mundo melhor, ao menos o seu próprio. São os insanos que fazem acontecer, são eles que quebram os estereótipos e que estabelecem novos paradigmas. São acusados de insanidade e condenados pelos comuns. Os comuns, por serem maioria, sempre têm razão. É assim que deve ser. É assim que ela continua.

E assim ela permanece entregue à sua própria loucura. Na rua. Na praça. No banco. Tão viva e tão segura como nunca antes estivera.