AMNÉSIA ÁLCOOLICA

Eu vou contar o que me lembro:

Que eu e o meu amigo Denilson, saímos numa ensolarada manhã de domingo para tomar todas, numa festa, na casa de um amigo, do curso que nós fazíamos na época: biblioteconomia.

É, esse curso mesmo. Sempre a mesma reação. Toda vez que alguém perguntava qual era o curso que a gente fazia, a resposta era sempre a mesma:

-O quê?

-Biblioteconomia.

-Bibliote... o quê?

-Biblioteconomia.

-AH! O que significa?

-Que a gente tá estudando pra trabalhar ou administrar uma biblioteca.

-Ah, tá certo.

Continuavam sem entender nada.

Fomos um dos primeiros a chegar na casa do Lian.

Ele tava lá, magro, pálido e abatido como sempre. Gostava muito de uma menina da nossa turma, mas ela não dava a menor bola pra ele, também pudera, o cara não tinha a menor iniciativa, ficava pelos cantos da sala desenhando e se achando o último romântico, enquanto aquela loura, que já tinha dado pra metade da sala, ferrava com o coração dele.

O Denilson vivia zombando do cara:

-Diz aí, tanga frouxa!

-Fala, cara. - A voz do Lian era um desânimo só.

-E aí, tua amada já apareceu?

-Ainda não.

A trilha sonora de Footloose embalava a nossa chegada. Pop e transpirando energia adolescente, igual ao nosso anfritião.

-E aí, Tibúrcio? Como é que cê tá?

-Tô me virando como posso, cara. A dita cuja chegou? - Era como eu me referia aquela garota franzina, metida a estudiosa, que queria ser freira e teimava em me rejeitar.

-Ela tá já chegando.

Pegamos umas latinhas na geladeira e o resto foi puro tédio. Ao som de Footloose (a trilha), eu vi se desenrolando na minha frente um verdadeiro desfile de beldades, posando de gatonas, e um monte de bichas enrustidas. A Fashion Week perdia pra eles.

Eu e Denilson nos retiramos e ficamos bebendo na varanda.

Foi aí que começou um joguinho chato, que algumas pessoas inventaram, pra dizer todo tipo de merda e mentira manjada possível, em tom de verdade e de uma maneira confessional, pra se sentirem liberais: o jogo da verdade.

Usavam uma garrafa vazia pra indicar quem ia responder à pergunta mais estapafúrdia possível. Eu quase vomitei.

Pra que aquela porra toda? Pra que aquele desperdício de energia? Se eles se achavam tão liberais assim, porque não tiravam todos a roupa e iniciavam um bacanal, ali mesmo, regado à muita cerveja e devassidão?

Mas nada. O que eles queriam era só chamar a atenção pras suas vidinhas fúteis e vazias, tentando dizer com isso: "Olha! apesar de eu receber mesada da mamãe e do papai e de nunca ter dado duro numa barra de sabão, eu sou puta pra caralho, viu? Posso falar sobre sexo à vontade". Mas quanto a fazer, aí é outra história.

Diante de tudo isso, Lian teve que mandar um cara dar várias idas ao supermercado, ali próximo, com a finalidade de reabastecer o estoque de bebidas que eu e o Denilson tomávamos compulsivamente.

Chegou a namorada do Denilson. Menos mau. Ela pelo menos não tinha a menor frescura, nos deixava bebendo à vontade, enquanto conversávamos a merda que quizéssemos e ela não tava nem aí.

Depois chegou a dita cuja. Eu fui até a cozinha pegar uma cerveja. Lembro que ela tava chata pra caralho, só me dava fora, mais nada.

Terminamos de tomar o restante das latinhas que estavam na geladeira.

Depois... o branco. O vazio total. A queda nas profundezas de um abismo infinito de inconsciência. Alguns flashes e... o nada.

Agora eu vou dizer o que me contaram:

Enquanto estávamos na varanda, não sei porque motivo, talvez porque eu estava assistindo muitos videoclips do kiss na época, cismei de dar uma de Gene Simmons. Talvez minha intenção fosse só colocar um pouco de fogo naquele lugar, incendiar um pouco aquelas pessoas mortas e entediadas, dar-lhes um pouco de diversão.

Comecei a colocar o linguarão pra fora, subindo e descendo várias vezes, com ele. Depois tomava mais uns goles de cerveja e repetia o processo.

Denilson e a namorada acharam graça, rindo de toda aquela merda, dando corda para aquela exibição idiota.

Até que eu achei de propor um desafio:

-E aí, vocês duvidam eu chegar ali, no meio daquele joguinho de merda, e botar a língua pra fora, na frente de todo mundo e dizer que eu tô afim de chupar uma boceta?

Denilson fez questão de incentivar:

-Vai lá, cara! Bota pra foder!

Era um daqueles caras que gostavam de ver um amigo se dando mal e no outro dia fazia a maior piada com aquilo. Eu caí direitinho.

Fui andando, cambaleante, no meio das pessoas, coloquei dois dedos em forma de V, botando entre a língua e vomitei essa preciosidade:

-OLHA AÍ, GALERA! EU TENHO UM JOGO BOM PRA VOCÊS! É O JOGO DA BOCETA! QUEM ACERTAR UMA PERGUNTA, CHUPA UMA BOCETA!

As meninas ficaram escandalizadas, os homens queriam demonstrar a sua masculinidade, surrando um bêbado, e as bichas, bem, as bichas preferiam o jogo do pau.

Lian me retirou à força e me levou pra cozinha. Me deixou ali, sozinho, curtindo minha embriaguez e solidão.

De repente, a minha musa inspiradora resolveu vir pra cozinha, preparar um café. Com certeza era pra uma das visitas mas eu, no alto da minha embriaguez, achei que fosse pra mim.

Fiquei um tempo olhando pras costas dela, ali na minha frente. Tudo nela parecia tão perfeito, eu não mudaria nada naquele corpinho esbelto e maravilhoso.

Adoraria agarrar ela por trás e consumar meu desejo ali mesmo. As pessoas na sala que esperassem pra tomar o seu café amargo.

Foi então que eu fiz uma coisa que, devido a situação em que eu me encontrava e o excesso de frescura do objeto dos meus desejos, se tornou tanto mais irritante.

Olhando firmemente para aquelas pernas (ela estava de bermuda, o que deixava à mostra um belo par de coxas) eu comecei a subir lentamente com o dedão do pé direito na sua perninha, lisa e grossa, começando pelo tornozelo. (Eu estava sentado com as costas apoiadas na parede, a poucos centímetros dela).

Ela não pôde conter o arrepio involuntário que sentiu naquela hora e que veio tão rápido quanto o seu ódio e desprezo por mim.

-E aí, neném? Vamos brincar? - falei colocando em seguida a língua pra fora, simulando um coito oral.

Não deu tempo nem de passar da panturrilha.

-SAI DAQUI, SEU TARADO! ALGUÉM TIRA ESSE BÊBADO TARADO DE PERTO DE MIM!

Todos irromperam pra cozinha pra socorrê-la. É interessante como nessas horas a solidariedade humana se mostra tão solícita. Houve mais demonstrações de masculinidade gratuitas e, aos empurrões, bofetadas e pontapés, me expulsaram daquela casa.

Logo estava na rua. Sem sexo, sem amor e sem bondade.

Mas pelo menos eu tinha bebido.