A fantasia

Apesar de ceder a segunda e a terça-feiras de Carnaval a empresa exigiu, como contra-partida, a compensação de uma hora a mais de trabalho ao longo de dezesseis dias úteis; por conta disso, à saída do serviço enfrentam-se filas maiores, maiores congestionamentos e massas de indivíduos cujo humor assemelha-se ao de búfalos acossados por leões.

Ao final das escadas rolantes do metrô, encontro as passagens obstruídas por camelôs que vendem mercadoria conforme o clima: fones de ouvido para celulares e chocolates nos dias secos ou guarda-chuvas e sombrinhas nos úmidos. Mais à frente um violinista - que no auge da crise financeira apareceu por ali e mais arranhava que tocava o pobre do violino - acostumou-se aos cobres que lhe jogam no chapéu a seus pés e, apesar de ter aprimorado a técnica de tocar, estacionou num patamar que também não lhe permite vôos mais altos e por ali conforma-se em passar seus dias, junto a uma pequena caixa de som que lhe serve de acompanhamento, emitindo em seu alto-falante um arranjo musical metálico e abafado.

Tem também aquele pessoal vestindo aventais de cores berrantes, representando bancos e oferecendo crédito financeiro em condições tão obscenas que fariam um agiota corar, ou então sujeitos engravatados e indiscretos empurrando planos de saúde, sucos emagrecedores ou simplesmente tentando aplicar velhos golpes de estelionato. E não poderia deixar de citar aqueles camaradas que quase conseguem tirar o cidadão do sério quando esfregam nos rostos suarentos de quem passa os folhetos que compram ouro, oferecem mandingas infalíveis ou indicam um novo restaurante com a mesma melhor comida caseira de sempre da região.

E foi porque vi um casal com maços de papel nas mãos flanqueando a mesma calçada em que me encontrava, que abaixei a cabeça, cansado já do dia mais longo e da viagem mais conturbada, tentando evitar o acinte de um folheto sambando rente às minhas ventas, obrigando-me a afastá-lo como se mosca fosse. Mas não foi o que aconteceu: agindo cortesmente, a moça e o rapaz uniformizados ofereciam seus folhetos com um sorriso simpático e uma distância respeitosa, informando tratar-se de uma nova escola de idiomas.

Com minha cabeça a meio caminho de levantar-se, ainda olhando de soslaio, é que percebi alguém fantasiado de papagaio; como eu já me afastava do trio, apenas reparei que a pessoa fantasiada, num movimento rápido e discreto, esfregou suas mãos à moda de asas e penas verdes. O gesto encerrava doses de vergonha e auto-piedade. A cena comoveu-me e fui tomado por uma compaixão dolorida por aquela criatura; no mesmo instante, desejei ser um mágico, que por magia fizesse surgir - ali, ao lado daquele trio - uma banda animada e afinada, divertida, que deixasse à vontade o pequeno louro e o fizesse sentir-se menos deslocado, menos insignificante. Que afinal, o encorajasse a fazer o papel que lhe cabia, que era o de chamar a atenção dos transeuntes insensíveis, que somos todos nessas megalópoles embrutecedoras de almas. E que ao fim e ao cabo eu pudesse dizer-lhe:

- Coragem! Não tenha medo nem vergonha! Você está trabalhando honestamente e só por isso deveria exultar de alegria! Divirta-se e faça de seu ganha-pão um momento de orgulho e satisfação. Força irmã! Força irmão!

Mas não foi o que aconteceu: a passo ritmado afastei-me do trio e tornei a baixar minha cabeça, agora num misto de censura e remorso. Tentei me confortar:

- De verão este aqui só tem o nome! Sorte de quem está dentro daquela fantasia, não estará sufocando com o calor...

Mas não foi o suficiente. Desejei mais que nunca chegar em casa, ganhar o abraço de minha amada, jantar e esquecer. Esquecer que estou num moedor de carne, mas que talvez ainda me encontre no bocal do moedor, um tanto afastado do fuso e das lâminas da máquina, para ali ser, algum dia enfim, triturado, repisado, esmagado até o fundo de minha alma. E não pude deixar de pensar que aquele pobre fantasiado talvez já fosse a peça moída dada de comer a este mundo-cão. Relembrando aquele gesto aflito de suas mãos, lhe dirigi uma última prece:

- Força irmã! Força irmão!