Estátua Viva

O portão forçava as laterais na tentativa de conter o fluxo desesperado. Cachorros de raças distintas, algumas sequer conhecidas, confundiam coleiras ao insistirem em cheirar rabos vizinhos. Policiais temporários sugavam as gengivas interditadas com restos da última refeição. Flanelinhas organizavam um sofisticado sistema de logística: “passou do segundo semáforo? Perdeu, Jão! Tá na minha área”. Ciclistas desprezavam a lentidão idosa ao revezarem a desgastada ciclovia com as calçadas lotadas. O sol ácido ressecava a pele e feria os olhos, protegidos por óculos falsificados. Estilosos, mas falsificados. O ritual em busca do duvidoso descanso guardava nome e data marcada. Parque do Ibirapuera. São Paulo. Todos os domingos do ano.

Os blocos humanos formavam-se com velocidade espantosa. Alguns manos estufavam os peitos e escolhiam o time de basquete: “cadê o patrão que trouxe a bola dos Lakers? Foi aquele baixinho de óculos? Aí, truta! Escolhe em qual time quer jogar”. Mães recém consagradas com o título empurravam seus carrinhos na esperança de reconhecerem o próprio corpo novamente. Pais saídos de roteiros publicitários ensinavam os filhos a andar de bicicleta: “olha a gorda, filho! Olha a gorda!” Casais caminhavam abraçados, planejando um futuro viável somente naquele cenário pacífico e de entediante verde: “e se a gente montasse uma pousada em Floripa e transasse todas as manhãs sob o nascer do dia?” No entanto, ninguém chamava a atenção como o personagem imóvel que ofuscava seus fãs com um sedutor brilho dourado. Fantasiado de retirante estava Lucinaldo, a Estátua Viva.

5:30 da manhã. Esse era o horário em que Lucinaldo costumava acordar com o barulho dos barracos vizinhos ou do ronco da companheira. Ainda no travesseiro, reservava treze segundos na tentativa de entender o que o levara a casar com a prima. Dez anos depois, só sabia que era melhor agarrar-se à crença do número “treze” do que à própria mulher. Molhou o cabelo sem lavá-lo, recheou um pão endurecido com margarina e dividiu as remelas com o cobrador de sempre. Duas horas depois, já se alongava no Parque do Ibirapuera, lambuzando sua pele com tinta dourada. “Não, não é tóxica!”, repetia para algumas madames que insistiam em alertá-lo contra os perigos de um câncer cutâneo. No fundo, Lucinaldo sabia que pobre morria de tuberculose, tiro, nó-na-tripa e desgosto. Nunca de câncer.

O trabalho não tinha segredos. Deveria ficar imóvel como uma estátua até que alguém, fosse por reconhecimento ou pena, o contemplasse com algum trocado. Neste instante, como um feto desdobrando-se na bacia hospitalar, mudaria de posição e arrancaria desordenados aplausos. Até aquele domingo o roteiro não sofrera revisões. Até aquele domingo.

Perdido entre a multidão que encarava o imóvel homem dourado – “calma, querida, uma hora ele vai acabar mexendo” – um gordinho suado arrasta o pai impaciente. Lucinaldo sonhava com o almoço, o medo desconhecido de viajar de avião, a rapadura que nunca mais comeu, o número treze, mas nunca com o falatório que o cercava. Somente o estalo da moeda em sua latinha era capaz de trazê-lo à realidade. “Merda, mais uma de 10 centavos”, pensou exigente.

Antes que obedecesse ao ritual, percebeu o sorriso sarcástico da gordurosa criança, como se esperasse o prêmio que nunca recebeu em competições esportivas da escola. Segundos após notar o homem que apoiava os braços no ombro do filho empolgado, Lucinaldo sentiu os músculos comprimirem. O sangue parecia congelado e a respiração alterou seu funcionamento. A dor aguda atravessava suas coxas, forçando-o a esmagar os dentes. Um Lucinaldo petrificado sentiu a aproximação da raiva cuspida do pai. “Por que ele não mexe?”, perguntava quem assistia. O gordinho estourou um choro abobado, enquanto exigia o movimento a que tinha direito. “Ué, querida! Ele pagou pelo serviço”, comentava um advogado, eterno repetente no exame da Ordem dos Advogados, em defesa do menino. Lucinaldo não conseguia parar de pensar no número treze e no ronco masculino da mulher. Os punhos do pai herói o ameaçavam. Sentia uma vontade absurda de urinar. “Que zona é essa aqui, porra?”, gritavam dois policiais de aparência corrupta. “Preciso muito mijar”, pensava a estátua viva. Alguns manos batiam os skates no chão, provocando a tensão da multidão. Cachorros arfavam excitados. A última lágrima do pirralho misturou-se ao chão imundo. De repente, todos congelaram suas posições.

O silêncio repentino esquentou a mente de Lucinaldo. Viu-se erguido por um grupo de mulheres nuas e de unhas vermelhas. Do alto, enxergou seu corpo dourado esquecido no chão. Em câmera lenta, lembrou do vôo dos dedos calejados em direção à parte frontal do seu crânio, borrando sangue e tinta. Uma insistente música de elevador não permitia que ouvisse qualquer som que decifrasse seus últimos instantes. Contou até treze mentalmente, imaginou a prima vestida de preto e deixou as dores para trás.

Juntamente com a pior câimbra da sua vida.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 28/08/2007
Reeditado em 29/08/2007
Código do texto: T628137
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