Contos das terças-feiras - O Circo e a Enfermeira

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 20 de março de 2018

Órfã de pai alcoólatra, antes dos dez anos de idade, Maria morava em uma tenda de circo que apresentava peças teatrais baseadas em romances conhecidos nas décadas de 1940 e 1950. Apresentava também variedades e atrações de picadeiro. Foi a mãe de Maria, com a morte do pai, quem passou a comandar o circo, e com mão enérgica!

Maria, ao crescer, passou a fazer parte do elenco teatral do circo. A chegada da televisão veio pôr fim a dramaturgia no circo, que ganhou mais emoção com a apresentação de atividades como o globo da morte e o taxi maluco, bem como outras atrações artísticas menos interessantes. É claro que os palhaços, os trapezistas, os malabaristas e as dançarinas permaneceram fazendo o costumeiro sucesso.

Para ela, os governos estaduais e municipais contribuíram para o desinteresse dos frequentadores do circo ao colocar aparelhos de televisão nas praças públicas. O resultado disso, explicava Maria:

— Ninguém mais queria saber de teatro em circo, lá o povo pagava para ver o drama ou a comédia, na televisão passava Jerônimo, o herói do sertão, e era de graça.

Esta situação era desfavorável à permanência do teatro no circo e causava atritos entre os atores e os que trabalhavam no picadeiro. Segundo ela:

— Havia divergência entre os dois grupos, o que levava a comédia e o drama ao povo e o pessoal que trabalhava no picadeiro.

Mesmo após a venda do circo pela sua mãe, que fora atriz, cantora e dançarina, Maria continuou viajando com outros circos, estava no sangue. Em companhia de um rapaz que conhecera no circo onde ela nascera e iniciara a profissão, viajaram por muitas praças de pequenas e grandes cidades do Nordeste. Os dois viveram um longo romance durante muitas temporadas em diferentes circos.

Ela lamenta afirmando que muitos donos de circo morreram financeiramente:

— Uma coisa muito triste, até mesmo um grande circo, de 14 mastros, faliu, morreu à mingua. Antigamente, no circo, se levava uma vida realmente amarga, não havia futuro.

Cansada dessa atividade, ela fez um curso de auxiliar de enfermagem e logrou passar em concurso público. Foi trabalhar em um hospital do governo, com salário fixo e pontualmente pago todos os meses. Ali era muito diferente do circo:

— Em épocas passadas, por falta de estrutura, o circo não prosperava financeiramente, "você ganhava hoje para gastar amanhã". Enquanto estava ganhando, tudo bem. Quando a velhice chegava, sem aposentadoria, a ajuda dos outros era essencial para a sobrevivência, — continua a Auxiliar de Enfermagem, em seu lamento, com voz embargada, deixando transparecer certa saudade daqueles tempos.

Em suas lembranças ela admite que havia preconceito com o pessoal do circo:

— Tem e sempre teve, e não é só com o circo, é com o negro, com o gay, mas com o circo é também a falta de valorização. O preconceito é velado, mas existe. Sofri preconceito até quando fui trabalhar no hospital, só porque eu era de circo. Depois que fiz o concurso do INAMPS foi que mudou, graças a Deus.

O entusiasmo de Maria pelo circo é tanto que ela pretende escrever um livro de comédias circenses, “eu montei duas comédias". Atualmente ela ainda trabalha com teatro, mas só com comédia.

Até hoje o seu nome é respeitado no meio circense como artista. Ela reconhece que agora existem muitos circos bem estruturados, trabalhando bem, com muitos artistas, principalmente entre aqueles que recebem apoio financeiro.

— Naquele tempo não tinha isso, diz Maria, tudo era diferente, a falta de apoio, a perseguição dos prefeitos que não valorizavam a arte circense, a dificuldade de transporte por causa das péssimas condições das estradas, a televisão e até o profissionalismo que faltava em alguns artistas. Tudo conspirava contra o circo. Mas, conclui ela, o circo venceu, graças ao bom Deus e aos homens e mulheres que deram seu sangue e seu amor por esta arte tão singular e tão bela.

Apesar de tudo, sua percepção sobre o circo hoje é a mesma daquele tempo. Embora trabalhando ainda em hospital, o circo é uma marca indelével em sua mente.

— No circo eu procurava curar as tristezas dos que ali compareciam, o remédio era a gargalhada gostosa que o público extravasava. No hospital, são os remédios e procedimentos prescritos pelos médicos que nós, as enfermeiras, procuramos administrar, com carinho e amor aos pacientes sob nossos cuidados.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 20/03/2018
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