regresso ao nada

O sol tomava conta de tudo e a sensação de estar dentro de uma sauna as 6:30 da manhã me acordou. Há dias não conseguia dormir após esse horário, e mesmo que minha cabeça estivesse doendo e eu um profundo enjoo tomasse conta de mim, eu não consegui pegar no sono novamente. Uma inquietação tomava conta do meu corpo, então decidi levantar.

A sensação de fracasso se abateu sobre mim enquanto passava manteiga no pão, que ainda quentinho a derretia. Sentia que estava fracassando em tentar não fracassar, apesar de ter uma ideia diferente sobre sucesso.

Até o momento eu não tinha conquistado nada grandioso na vida, e enquanto tomava um gole de café requentado, pensava que minha maior conquista era ainda estar vivo. Não eram poucos os momentos que eu me colocava em risco, seja por terceiros ou por minhas próprias mãos. O café era de ontem, mas eu não me importei e tomei como se fosse um recém passado quentinho.

Me sentia desencorajado até mesmo para sair na rua. Estava sozinho, em outro estado, sem dinheiro e sem qualquer perspectiva de algo dar certo. Não tinha alguém para conversar, tomar uma cerveja e falar sobre as coisas do coração. Já tive isso mas com a vivência percebi que esses momentos eram como um cigarro, que você acende, dá umas tragadas e pouco tempo depois tudo que resta são cinzas.

Em pouco mais de uma semana naquela nova cidade eu já era conhecido pela atendente do mercado na qual ia todos os dias pela manhã. Talvez isso possa ser explicado pelo fato de que em uma cidade pequena todos se conhecem, e quando alguém novo aparece todos percebem, tornando-se visado. Sempre que acordava, comia algo, tomava um banho e saia para andar. O funcionamento de uma cidade do interior é extremamente peculiar e engraçado. Durante a semana o centro da cidade, onde estão localizados lanchonetes, farmácias, bancos e lojas, ferve. Pessoas do interior saem de suas casas para vim até a capital resolver os seus problemas, senhoras em filas gigantescas de bancos, homens em botecos às 8 da manhã jogando conversa fora. Crianças correm pela praça e pedem sorvete e outras guloseimas para os pais.

Naquela manhã segui meu roteiro de todos os dias. Sai, sentei na praça e fumei um cigarro enquanto observava o movimento. Me sentia invisível algumas horas, em outras parecia que era o centro das atenções. Existia um estranhamento no olhar das pessoas para mim. Isso me deixava com raiva.

Logos após fui ao mercado e comprei o de sempre. Duas cervejas pretas, pães, presunto fatiado, quatro cervejas pilsen, uma embalagem de chicletes e um maço de cigarro. A atendente, uma mulher que beirava os 50 anos e que todas as manhãs estava com o mesmo semblante, como se estivesse de saco cheio e só trabalhasse ali por mera questão de sobrevivência, parecia já conhecer minha rotina. Sem precisar somar as minhas compras já me deu o valor. Prontamente paguei.

Durante a caminhada matinal eu costumava ter ideias, muitas coisas vinham até a cabeça, porém, ao voltar pra casa e tentar colocar tudo aquilo no papel nada saia. Escrevia uma linha, lia, apagava, conseguia montar um paragrafo, achava ruim demais e apagava tudo de novo até ficar extremamente de saco cheio e deixar tudo aquilo pra lá.

“Ah, amanhã eu consigo”, pensava. Porém, os dias pareciam seguir sempre o mesmo roteiro. Eu não conseguia produzir nada e com o passar do tempo aquilo foi me irritando profundamente. Escrever era a única coisa que eu conseguia fazer, de uma forma não tão boa e correta, mas dentre todas minhas habilidades, essa era a que beirava ao ponto aceitável.

Sentia como se minhas energias estivessem sendo carregadas ali, naquela pequena cidade do interior, escolhida a dedo para que pudesse ter um pouco de paz. A casa, alugada calculadamente perto do centro da cidade e por um preço bem abaixo do que eu era acostumado a pagar, era imensa, mas uma das únicas que encontrei aconchego.

Sai de Goianesia e deixei toda minha vida lá. Meus amigos, minha família, meus contatos, a mulher que eu amava. Há algum tempo as coisas pareciam não dá certo por lá. Estava desempregado, e os poucos trabalhos que conseguia não me sustentavam. Meus últimos empregos foram em uma empresa publicitária escrevendo slogans, e em um pequeno jornal local, com uma coluna cobrindo times do interior. Nada daquilo fazia sentido para mim, sentia que existia um potencial maior dentro de mim, que estava sendo sugado pela forma como eu estava vivendo. Tinha problema com vícios, e isso afetava quase todas as minhas relações, menos com minha ex-mulher, Virna, que por outras circunstância da vida foi embora.

Frustrado, meus dias resumiam-se a vagabundar pela rua. Sem emprego, sem dinheiro, sem Virna, longe dos meus amigos que pareciam estar progredindo nas suas escolhas, virando noites e mais noites tomando velho barreiro nos piores bares da cidade, e parando apenas quando a ressaca me acordava no dia seguinte.

Eu estava me afundando e não ia aguentar muito tempo, ou morreria ou ia enlouquecer. A sensação de só atingir as pessoas que eu mais gostava com minhas atitudes acabava comigo por dentro, e o isolamento era inevitável. O mundo e todos que me cercavam pareciam andar melhor sem mim por perto. Acompanhado disso tudo eu não conseguia escrever nada há muito tempo.

Decidi que era hora de partir. Certo dia, sem deixar recado ou explicação alguma, tracei o meu destino e segui, sozinho, acompanhado somente de uma mala com minhas roupas e uma mochila onde carregava um computador velho além de alguns livros. Ia tentar encontrar alguma paz e procurar trabalhar.

Sempre buscava ter ideias baseadas na minha vivência pela rua, mas também buscava essas referências em coisas que vivi anteriormente, tentando exprimir isso em meus textos. Sentava em frente ao computador, que funcionava graças a um milagre e fita crepe, mas não conseguia colocar nada para fora. O fracasso e a sensação de impotência me abatiam. Estava ali há algum tempo e não tinha conseguido nada de concreto. Como eu esperava atingir pessoas e arrumar algum dinheiro com isso se nem mesmo conseguia formular uma frase à respeito do que eu pensava? Eu estava paralisado.

Sentia que não ia conseguir. Eu não sabia o que fazer. Precisava de algum dinheiro e pensei em arrumar qualquer outro emprego, mas quem iria me empregar? Eu não sabia fazer quase nada. Era como se estivesse preso dentro de uma prisão em mim, sem conseguir sair. Por alguns dias deixei esse sentimento tomar conta de mim por completo. Ninguém sabia, e não precisava. Ninguém me falava nada à respeito disso, até por que não havia ninguém por ali.

Ter material para ser publicado era a minha meta, mas como algumas pessoas do meu passado falavam, como que eu podia chegar à algum lugar levando a vida que tinha? Se existia algum culpado era eu e as escolhas que fiz ao longo da vida que trilharam meu caminho, que apesar de ser vista como errada por alguns, foi bem vivida até o presente momento. Eu tinha plena consciência desses dois lados da moeda.

Preparei um pão com presunto, me joguei no sofá e liguei a televisão. Nada conseguia me entreter, tudo parecia chato, o calor era insuportável e não tinha água. Lembrei das manhas de domingo, eu de cueca, cortando legumes, temperando a carne e esquentando a água para cozinhar o macarrão, enquanto Virna lavava as louças que eu sujava. Depois de comer um spaghetti a bolonhesa deitávamos na cama ou no sofá da sala e passávamos de canal por canal, sem ter nada para assistir, com tédio e de barriga cheia. A diferença é agora era que o tédio não era o mesmo de antes.

Ninguém me perguntava sobre o meu trabalho, como as coisas estavam andando. De certa forma isso era bom, porém, antes existia alguém com esse papel na minha vida, e apesar de sempre ter um ar de não ligar para isso, era fundamental. Se eu pudesse, pensei enquanto mordia o pão de uma forma tão descuidadamente fazendo o presunto escorregou e caiu do chão, eu teria aproveitado cada um daqueles momentos com mais intensidade, mas agora, nada disso importava mais. Não se pode beber o leite que já derramou.

Deixei tudo que tinha para trás com a falsa sensação de que me desprendendo de tudo eu ia finalmente conseguir tomar um rumo. A vida às vezes parece uma sucessão de chutes no saco com raros momentos para respirar tranquilo e aliviado.

Pensava que seria difícil as coisas piorarem e me enganei. Depois de lembrar daqueles domingos uma saudade súbita surgiu de tudo que deixei para trás. Sai para tentar me encontrar, naquela cidade pacata, onde ninguém me conhecia, onde poderia pensar e botar as ideias no lugar. Mas as coisas andavam difíceis. Apesar de me sentir bem sozinho na maior parte do tempo, as únicas pessoas com quem tinha contato eram as que conversavam na rua, todos desconhecidos e com papos rasos, e alguns editores com quem mantinha contato quase que diariamente. Aliás, pode se chamar e-mails pedindo uma chance de contato? Até mesmo o mais conformado dos homens tem algum lugar que considera como um porto seguro, e tudo bem sentir saudades disso às vezes.

Não podia deixar que esses pensamentos tomassem conta de mim, principalmente naquele momento. Nunca me considerei um cara com muitas pessoas em volta, apesar de te-lás. Algo em mim, talvez causado pela vivência, me fazia sentir uma solidão imensa, porém ali era diferente, eu não apenas sentia como realmente estava.

Tentei voltar a me concentrar no que precisava fazer: escrever algo bom e ter uma chance para mostrar o meu valor, mas algo me bloqueava, como se uma porta na minha mente estivesse trancada à sete chaves e essa chave estivesse no fundo do mar.

Nada na minha vida foi talento, e sim dedicação com uma pitada de descaso comigo mesmo, como na época que eu jogava em um pequeno clube de Goianesia. Não era bom e talentoso naturalmente como outros companheiros, mas conseguia sempre figurar como titular em alguns jogos, porém por faltar muito aos treinos táticos e físicos, indo só nos coletivos, uma espécie de treino que não é muito exigente e somente se joga futebol com os demais, acabei ficando pra trás em relação aos outros, que evoluíam. Por essa defasagem e pela indisciplina acabei sendo expulso do clube.

Decidi dar um tempo à mim mesmo. Eu só dava dando murros em pontas de facas o tempo todo nas tentativas frustradas em escrever ou em enviar meu trabalho à alguma editora. Durante os meses de estadia nessa pequena cidade apenas consegui duas respostas. Uma delas sendo um email automático, informando que minha mensagem havia sido recebida. Outra um contato mais pessoal, pedindo para que eu enviasse algum trabalho meu. Fiz como o combinado e não obtive mais retorno.

Talvez dando um descanso para minha mente, sem pensar ou me cobrar para trabalhar ou escrever, e tentando viver da melhor forma com o resto de dinheiro que ainda me sobrava, eu poderia relaxar e finalmente conseguir engatar alguma coisa de futuro.

Os dias passaram e eu não fiz nada, apenas segui a rotina como qualquer outra pessoa. O tempo passava e mesmo tentando, era inevitável não sentir a sensação de que aquilo não era para mim só aumentava. Teria a minha criatividade ido embora? Minha capacidade de observar e absorver acabaria de vez? Sentia-me inseguro e incerto sobre o futuro. Talvez fosse hora de tentar outra coisa.

Odiava os domingos desde sempre. O que ainda me provocava excitação nesses dias era o futebol que jogava na rua 73 toda a tarde, ou assistir os jogos do meu time, porém, há muito tempo, antes mesmo de mudar-me para essa pacata cidade, eu não jogava mais. Sobre meu time eu ainda acompanhava, não com a mesma frequência de antes. Ainda assim ele continuava sendo uma das minhas maiores paixões.

Mal sabia eu que, justamente em um domingo, um dos dois onde penso que nada acontece e tudo e todo organismo vivo está em estado vegetativo, as coisas começariam mudar na minha vida.

Depois do último contato que tive com alguma possibilidade de publicação e após o bloqueio criativo que me acompanhou durante quase todas aquelas três meses, o tempo de minha estadia em Capitão Mó, eu finalmente comecei a rascunhar algumas coisas, mas sem muita qualidade. Nada era tão bom, mas ao menos estava conseguindo fluir um pouco. Era um conto, sobre um vaqueiro que trilhava os quatro cantos do sertão nordestino em busca de melhoria para sua família, mas que só conseguia encontrar dificuldades pelo meio do caminho. Um típico clichê.

Naquela manhã o celular tocou e, sem ao menos pensar, recusei a chamada. Ao acordar as 13h lembrei que geralmente não usava despertador, então por que meu celular tocou naquele dia? Decidi verificar, e então percebi que, pensando ser o despertador, acabei recusando a chamada de alguém que me ligara naquela manhã. O número era desconhecido, porém, de Goianesia. Decidi retornar, ver quem era e sobre o que se tratava.

- Alô.

- Olá, quem fala? Respondeu.

- Aqui é o Maurílio, alguém me ligou desse número hoje de manhã.

- Maurílio! Que bom que conseguir falar com você! Estou tentando há quase um mês e só agora encontrei seu contato. Como vão as coisas?

- Tudo bem, mas quem é?

- Aqui é o Artur, lembra de mim?

Artur era um ‘agitador cultural’ de minha cidade, aproximadamente 30 anos, costumava usar camisas xadrez e calças bastante apertadas, que me davam uma leve agonia. Gostava de estar presente em todos os eventos culturais da cidade, sempre muito comunicativo e expansivo, fazia amizade fácil por ser um sujeito simpático e legal, sempre prestativo e sorridente, ao contrário de mim.

O conheci certa ocasião em uma feira de exposições. Nesse dia decidi levar alguns textos para expor, porém, ao chegar lá e vê o nível do que estava sendo exposto, me desencorajei e decidi voltar para casa. Na saída, ao parar para acender um cigarro, Artur esbarrou em mim, e com todo aquele jeito me pediu desculpas, pediu um cigarro e perguntou o que eu fazia ali. Respondi que estava de passagem, mas ao ver a pilha de folhas que eu trazia em uma pasta em baixo do braço, acabou pedindo para ver o que era e descobriu os meus textos.

Leu alguns e começou a falar sobre várias coisas, mas nada sobre contos e crônicas. Decidi que era hora de partir, eu não me sentia bem naquele lugar, com todas aquelas pessoas alternativas, e suas bagagens culturais que ia de Shakeaspere à Carlos Drumond de Andrande, e toda aquela língua culta. Nada daquilo parecia comigo e nem fazia o meu estilo. Nada dali era igual ao que eu fazia. Me despedi e fui embora. Nunca mais o vi pessoalmente, nossos poucos contatos eram resumidos à mensagens.

Apesar do tempo ter passado, ao que tudo indica Artur continuou acompanhando o meu trabalho, através de pequenos contos e crônicas disponibilizadas em um blog que eu mantinha, como forma de pratica, mas sem muitas visualizações ou acessos.

- Artur? Quanto tempo cara, não sabia que você ainda lembrava de mim!

- Lembro e trago boas notícias. Sabe aquele dia em que trocamos contato e eu prometi arrumar alguém para olhar seu trabalho? Andei lendo as últimas coisas que você escreveu, consegui falar com um amigo meu, de uma pequena editora, mas que está disposto a te dar uma chance. Traga algo para ele ver, uma coisa nova.

Não sabia o que falar.

Eu acreditava naquilo. Aquela manhã de domingo me lembrou as que eu tinha com a mulher que eu amava, sempre animadas, fazendo macarrão a bolonhesa e passando o resto do dia no tédio. Mesmo com as circunstâncias sendo outras decidi comemorar fazendo um banquete para mim com o que tinha em mãos. Abri uma garrafa de velho barreiro e me deliciei pós almoço. Naquele dia nada importava, uma estranha animação tomou conta de mim. Finalmente eu teria uma chance.

Almocei e deitei no chão, de barriga pra cima, fumando um cigarro. Nesse momento eu pensei no quão irônico era eu estar voltando de onde sai fugindo para tentar buscar o que estava indo encontrar justamente lá.

Lembrei também que durante todo o tempo em que fiquei morando em Capitão Mó, quase não produzi nada, a não ser aquele conto que havia começado a fazer mas não terminei. Sentei em frente ao computador e estava decidido, porém novamente aquela sensação de incapacidade voltava a tomar conta de mim, mas agora era diferente. Eu precisava ter algo em mãos, precisava demonstrar quem eu era e a minha capacidade.

Tentei puxar na memoria algum acontecimento que rendesse uma boa história, mas nenhuma ideia parecia ser boa o suficiente. Apesar de ter uma forma de trabalhar pouco aristocrática, cheia de bagunças e desordem, eu era o meu maior critico, tendo demorado anos para gostar de algo que eu escrevi mesmo recebendo elogios. Eu tinha que escrever algo surpreendentemente bom, algo como nunca fiz.

Minutos depois eu tive uma das ideias mais clichês que existem: escrever sobre a incapacidade de escrever e o bloqueio que pairava na minha mente. Comecei e quando me dei conta já havia escrito mais de 10 páginas 20 minutos. Por mais de 3 meses eu não conseguia escrever tanto assim. Aquela excitação voltou a tomar conta de mim, eu escrevia, as ideias vinham, eu começava a pensar nas pessoas que eu gostava, nas que havia conhecido, eu escrevia como um louco, e permaneci assim até a noite, quando por fim me dei conta de que o último ponto final significava que consegui finalmente. Depois de muito tempo eu havia conseguido escrever algo que prestasse.

Era hora de voltar.

Cheguei à rodoviária e comprei um bilhete. Eu sairia no próximo ônibus, e além de pensar nas sofridas 18 horas, dentro de um ônibus, que me separavam de Goianesia, eu pensava em como seria meu regresso, em como as coisas estariam.

Como estaria tudo que eu deixei pra trás? Será que a mulher que eu amava ainda usava o mesmo corte de cabelo? Será que ainda amava leite fermentado? Será que estava sozinha? E meus amigos, sentiam a minha falta? O luke, cachorro do meu amigo, já teria filhotes? Meus pais estariam mais felizes sem os problemas que eu causava? Minha mãe sentia falta de me ligar de madrugada para saber onde eu estava?

Só teria as respostas quando chegasse. Durante todas as 19 horas de viagem; o ônibus atrasou uma hora; eu fiquei pensando sobre o rumo e das voltas que minha vida tinha tomado.

Ninguém sabia sobre a minha volta, e o dia de me encontrar com o tal editor estava se aproximando. Aluguei um quarto e com o restante do dinheiro comprei calças, camisas e sapatos novos. Precisava ir no mínimo apresentável para aquele encontro.

Tinha alguns dias livres até meu encontro com o tal editor, então comecei a ir nos lugares que eu costumava frequentar antigamente. O bosque, onde eu passava horas e horas com minha mulher, ainda estava lá, verde e com um alto fluxo de trafico de maconha, mas ela não estava lá. O barulho de rádio durante a manhã, enquanto minha mãe preparava o almoço, era o mesmo. Meus amigos ainda gostavam de tomar cervejas e batata frita às sextas, e a pista onde costumava caminhar continuava movimentada.

Nada parecia ter mudado. Eu não sabia se era certo eu voltar, depois de tanto tempo. Ia decidir assim que acontecesse a reunião. Por enquanto me manteria no anonimato.

Estava ansioso, e ansiedade é uma merda. Você não consegue se distrair com quase nada e a única coisa que se pensa é no que está causando ela, e em todas as muitas possibilidades de dar tudo errado, de acontecer merda e tudo ir por água a baixo. Tentei assistir televisão, escrever alguma coisa ou até mesmo ir caminhar. Nada estava adiantando, então tomei um ônibus e fui ao centro tomar uma cerveja.

Já era noite, os carros refletiam em poças de águas causadas por uma chuva caiu mais cedo. As pessoas andavam pelas ruas, conversavam, e eu parecia invisível, ali, naquela mesa. Pensava se iria conseguir publicar algo, em como seria voltar de vez para tudo que eu deixei, pensava na roupa que ia usar no dia seguinte e calculava as palavras que iria usar.

Entre um gole e outro, percebi que minha ex mulher estava do outro lado da rua. Tão sorridente, e com aquelas roupas que sempre chamavam a atenção de qualquer um. Ela falava e gesticulava, colocava um pedaço de pizza na boca e engolia com vinho. O cabelo esvoaçante. Encantadora como sempre. Pensei em ir até lá e falar com ela, mas não sabia qual seria sua reação. Antes mesmo de eu partir nós não tínhamos mais contato, porém nunca a esqueci. Decidi ir embora dali antes que ela me visse.

- Nossa, como você tá arrumado. Exclamou Artur.

- Obrigado.

Naquela manhã eu realmente caprichei. Uma camisa de linho florida, calça sarja devidamente ajustada, sapato de camurça, perfume e cabelos penteados

Estava tenso. Não sabia se minha forma de escrever agradaria o editor. Um senhor de meia idade, não grosso mas rude e firme o suficiente na hora de falar, e que sabia se impor apesar da gravata de patinho. Em cinco minutos de conversa consegui demonstrar a ideia do conto que tinha escrito. Deixei uma cópia com ele e fiquei esperando uma ligação.

Passaram se dois dias e nada. Três. Quatro. Cinco. Eu já pensava que tinha dado tudo errado. Não sei. Precisava tomar um ar, sair daquele apartamento e me distrair um pouco.

Caminhei por um bom tempo, até chegar frente a casa que meus pais moravam. Percebi que era hora do almoço. O feijão cheirava e eu sentia fome. Queria muito entrar e comer. Não sabia se era a hora certa, nem qual reação aconteceria, mas tomei coragem e chamei minha mãe. Ela não acreditou. Me abraçou e sem pedir explicações colocou comida para mim e ficou me olhando. Conseguia ver a felicidade nos olhos dela em me ver.

Estranhei. Teria eu me tornado alguém que estranhava as coisas boas e estava acostumado com as merdas? Eu gostava da sensação. Eu estava de volta. Poucos minutos depois o interfone tocava

Me surpreendi com a chegada de Virna, minha ex mulher, que estranhamente sempre manteve uma boa relação com minha mãe. Vinha trazer a noticia que alguns amigos tinham me visto pelo centro da cidade na noite passada, porém se espantou quando me viu ali, sentado na mesa, sem camisa e comendo.

Quando a vi não tinha palavras, apenas fiquei calado. O amor pulsava em nossos olhares. Fui salvo pelo telefone.

- Maurilio, tudo bem?

- Tudo, quem tá falando?

- Aqui é o editor. Analisamos o seu material, você vai ser publicado na próxima edição da nossa revista.

Três meses se passaram e muitas coisas aconteceram. Eu não fui publicado somente naquela edição. Nas seguintes também, tornando-se quase figurinha carimbada nas paginas da revista. Foi criado um projeto da publicação de uma coletânea com aqueles contos, que começaram com uma simples historia de um cara que queria ter uma chance para publicar algo, expandir o seu trabalho, ganhar um trocado com aquilo, afinal, era uma das poucas coisas que conseguia fazer.

Sentia que tinha realizado algo finalmente, e ao mesmo tempo percebi que o tempo sozinho naquela cidade, longe de tudo, buscando o autoconhecimento e isolação, serviu para perceber que eu podia fugir de tudo que me cercava, era uma opção. Mas era impossível fugir de mim mesmo. Eu não ia conseguir produzir mais se ficasse sozinho, ou por achar que não tinha problemas, na verdade, percebi que o que me inspirava vinham exatamente do meu pessimismo e de toda minha vivência com as mais diversas situações conflitantes, e que sem elas eu só seria mais alguém que escrevendo mais do mesmo..

Talvez o que me diferenciasse dos demais, não como algo positivo, era a minha capacidade de mesmo na ficção, conseguir exprimir uma realidade que todos tentam fugir, das coisas da vida, dos problemas e conflitos que apesar de difíceis fazem parte dessa coisa chamada viver, de uma forma tão nua e crua.

Regressei de onde fugi, consegui alcançar voos na minha carreira, e quase nada mudou. Mas o mais importante foi perceber que mesmo as coisas não mudando tanto, mesmo com sonhos serem conquistados, aquela era a minha vida, e tentar fugir disso seria bobagem, tudo aquilo ela o que me fazia uma pessoa real.