NÃO MORRA ANTES DE MORRER

Sol radiante, pessoas sorrindo, aos saltos e gritaria os moleques da rua se banhavam com uma mangueira. Era uma rua grande, bem asfaltada, com casas bonitas e algumas árvores pequenas ao longo da calçada. Parte da rua estava molhada e alguns muros também, aqueles meninos tinham tão pouco na mão, bastou sol e água para seus corações ficarem fartos. O vendedor de frutas caminhava em passos lentos, empurrava sua carroça com sorriso largo, pois acabara de fazer sua primeira venda do dia a uma senhora que sempre comprava laranjas; dava para sentir o cheiro das frutas. Laranjas, maçãs, morangos, todas em perfeito estado. No meio da rua um menino corria livre, o gesso na perna direita que o impediu de correr por quinze dias acabara de ser removido.

Na vivacidade e cor desta rua, uma mulher com um vestido azul florido, entrava em uma casa de primeiro andar segurando em sua mão direita uma sacola plástica branca. A casa tinha muros baixos, e um pequeno portão de ferro que chegava apenas em sua cintura. Uma varanda larga a céu aberto após o portão, porém não muito comprida, três passos e já dava de cara com a porta marrom da casa. Jarros com palmeiras decoravam a varanda, um em cada extremidade. Entrou na casa, subiu as escadas, abriu a porta do quarto devagar, respirou fundo e sibilou como se fosse dizer algo, mas não conseguiu, colocou a sacola com os remédios em cima da prateleira que ficava na parede do lado esquerdo da porta, saiu com os olhos cheios de lágrimas e com uma feição de desesperança.

Lá estava uma pessoa deitada em sua cama, já estava acordada, mas não levantou – ela não saia do quarto a meses – as janelas fechadas, as cortinas pretas enegreciam o ambiente, o ar condicionado deixava o quarto tão gélido que dava arrepios. No criado mudo ao lado da cama havia uma foto de uma menina ruiva, correndo em um campo verde, sorrindo e de braços abertos, pronta para abraçar o mundo. Perto desta foto um pote de comprimidos derramado e os comprimidos espalhados pelo chão. Nas paredes do quarto tantas outras fotos espalhadas em quadros; uma menina negra de cabelos enrolados andando com as mãos soltas em uma bicicleta, estava em um quadro perto da porta; em outra foto, uma garota de cabelos curtos lisos olhava para as estrelas da sacada do seu prédio; um menino de cabelos pretos e olhos claros sorria para a foto meio constrangido por ter acabado de colocar seu aparelho dental; ainda era possível ver um homem pousando para foto com seu diploma de formatura nas mãos, uma mulher correndo em direção ao mar com sua prancha de surf de baixo do braço, um senhor de idade avançada sentado em um banco de praça, sorria e se alegrava com seu neto nos braços. Assim, as paredes estavam repletas de pessoas sorridentes e alegres.

A pessoa na cama colou os pés no chão e ficou sentada, cabeça baixa, olhos fundos, pele esbranquiçada, há muito tempo não sorria. Levantou lentamente, caminhou em passos desesperançosos até a janela, abriu parcialmente a cortina e viu o sol lá fora, viu a garotada se molhando, o rapaz da fruta sorrindo, mas não quis viver. Era um desamor por si, desamor pela vida. Então a pessoa abriu a cortina por inteiro, abriu a janela, deu um suspiro e jogou-se, morreu. Ninguém ouviu barulho, não houve luto, ninguém foi vê-la, todos ainda viviam seu dia. Foi uma morte silenciosa, porque na verdade a pessoa não se jogou da janela, ainda nem tinha levantado da cama; ou melhor, ela se jogou da janela e morreu sim, mas isso aconteceu na hora em que ela desistiu de seus sonhos, parou de viver, desacreditou do seu potencial, parou de se amar, perdeu a esperança na vida, parou de sorrir. Quem a pessoa era? A menina ruiva na foto do criado mudo? A menina negra andando de bicicleta? A garota olhando as estrelas? O garoto do aparelho novo? O velho na praça? Ou outro entre tantos outros quadros que estavam no quarto?

Nenhum deles. Na verdade, eram todos eles, pessoas que morrem antes de morrer todos os dias, os motivos são diversos, cada um de nós conhece algum.

A mãe da pessoa entrou novamente no quarto, estava com uma agenda na qual não continham datas, haviam folhas sem linhas com poemas escritos – poemas que eu escrevi – Então a mãe sentou-se a beira da cama, com lábios trêmulos e lágrimas nos olhos num tom suplicante, recitou:

A vida tem seus mistérios

Tem suas dúvidas

A dor não pode deixar de existir

Caminhe com fé,

Vai lutando com as armas que tiver

Você não pode desistir.

No caminho as percas vão atrapalhar

É difícil, eu sei

Mas não para de sonhar

Lute hoje, lute amanhã

Me escute, se esforce para entender

Viva mesmo na dor

Só não morra, antes de morrer.

Então, aos prantos terminou o poema, e quando levantou a cabeça, sua criança sorriu, a mãe sorriu.