Jorge (*)

Início de ano letivo e eu, professora de quinta série, recebi junto a lista de novos alunos, um convite para comparecer ao gabinete da diretora. Ela me informou sobre um aluno – Jorge - mais que especial por seu histórico familiar. Filho de mãe solteira em uma cidade do Interior, tinha o pai recolhido à prisão de segurança máxima, com uma pena a cumprir que iria até o fim de sua vida. Após o nascimento do menino, a mãe o trouxe para Porto Alegre, onde passaram a morar, tendo ela desposado um operário.

Na primeira entrevista daquele ano, ela me expôs o problema de sua família: o marido saíra-se um bom pai para os filhos, mas com Jorge havia uma estranheza. Os dois até que se esforçavam: o rapaz era respeitoso, mas evitava a presença do padrasto e o último falhava em não lhe por umas rédeas. E o rapaz continuava cada vez mais calado, arredio mesmo, gazeando aulas junto a más companhias.

Esta mãe comparecia à escola para queixar-se, pensando ajudar, mas só piorava as coisas. Eu tentei envolvê-lo nas atividades didáticas, mas ele faltava dias seguidos, não correspondendo aos esforços. Em classe, permanecia no fundo da sala, olhar aéreo e durante o intervalo não se aproximava dos colegas. Perdera o ano várias vezes, até freqüentar a mesma turma de sua meia irmã, bem mais jovem do que ele.

Em outubro, para o dia da criança, propus a novidade para a turma: uma reunião dançante, logo aprovada com entusiasmo. Na época não existiam os bailes funk, tão na moda, e na Vila onde se situava a Escola, no bairro Sarandi, poucos eram os divertimentos para adolescentes. No dia da festa, levei o toca discos, os alunos trouxeram bolos e a escola ofereceu sucos. A música começou a rolar, mas eles não sabiam o que fazer, permanecendo encostados nas paredes da sala de aula. Não havia alguém disposto a “tirar” um par e iniciar a dança. Eu, então, convidei Jorge, o mais alto da turma e incentivei os que permaneciam acanhados, até que todos se animassem, dançando até o término do seu turno, quando a turma se despediu na maior animação.

As semanas seguintes trouxeram um fato novo: Jorge deu um jeito de sentar nas primeiras carteiras e tentou acompanhar a aula. Estava muito defasado, mas se esforçou, mesmo sabendo que seria reprovado.

Eu percebia seus olhares extasiados, fixos mesmo em mim. Na época eu era muito jovem e a turma era a segunda em minha carreira. Poderia. É claro, ter requisitado ajuda quando notei a situação, mas tive receio que me interpretassem mal, criticando a tal esta festa e, mais ainda, o fato de ter dançado com ele. Optei por acompanhar a turma que desconheceu o assunto, mas deve ter percebido algo, ao vê-lo disputando uma carteira bem na frente.

Meu constrangimento foi maior nos exames de fim de ano, sobretudo o de leitura, quando ficamos frente a frente. Ele gaguejou muito, saindo-se muito mal sem, no entanto, desistir.

Na festa de formatura a mãe, após receber os boletins, me dirigiu a palavra, com a naturalidade e franqueza que as pessoas de extração humilde encaram questões afetivas:

O que senhora fez? Não viu que o Jorge está apaixonado? Nestes últimos dois meses tenho passado sua melhor camisa branca, pois não quer o guarda-pó, todos os dias de manhã - ah, as mães antes da camisa volta-ao-mundo! Ele mesmo a lava cada noite e só fala na professora: que é linda, tem os olhos azuis, só comigo é que dançou e por aí em diante. Como a senhora não notou?

Eu levei um susto e desviei o olhar, esperando pelo pior. Lembrei ainda que esta mãe, depois de outubro, não voltara à escola como de costume. Foi com dificuldade que articulei uma resposta:

- Sim, notei, ele passou a se esforçar bastante, mas já era tarde para recuperar o tempo que perdeu e poder levar o diploma hoje, junto com a irmã.

Ela, no entanto, continuou:

-O diploma não é o mais importante e sim que meu filho está muito diferente! Ajuda em casa, não sai mais com aquela turma que vinha busca-lo todo dia, sabe-se lá para quê. Até emprego arrumou e vai estudar ano que vem à noite. Eu e meu marido nem podemos acreditar em tanta coisa boa! O que a sra fez para tudo isto acontecer?

Eu demorei um pouco para responder, repassando todo aquele ano e, por fim, disse:

- Eu convidei para dançar.

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(*) Publicado em "Histórias de Trabalho", edição 2006 da Prefeitura Municipal de Porto Alegre

Marluiza
Enviado por Marluiza em 31/08/2007
Reeditado em 04/10/2011
Código do texto: T632221