Uma tempestade em minha vida

Eu me chamo Francisco, tenho 40 anos, e pretendo relatar nestas poucas linhas, algo que marcou profundamente a minha vida. Não pretendo descrever detalhadamente o que faço, ou deixo de fazer, para não desviar o tema central dessa narrativa, apenas um breve resumo de como tudo começou....

Quando tinha 20 anos, conheci uma linda jovem na faculdade, a princípio era muito calada, quase não conversava com ninguém, e observei que enquanto todos conversavam, e riam, a misteriosa garota de cabelos castanho claro, longos sempre soltos, olhos também castanhos e espertos, ou estava com o olhar perdido em não sei aonde, ou com um pequeno caderno na mão escrevendo algo. Aquele comportamento me despertou uma curiosidade imensa, então pensei na possibilidade de me aproximar, puxar alguma conversa, queria saber mais sobre a menina que quase nada falava, mas sempre estava a rabiscar. Fiquei algumas semanas tentando bolar algo para me achegar, mas não conseguia encontrar um jeito, até que um dia... Estava eu no metrô a caminho do serviço, quando uma moça entrou muito apressada, passou por mim, e me deu um magnífico sorriso tímido. Era ela! Senti meu coração aquecer por alguns segundos, achei aquela sensação um pouco estranha, e um tanto engraçada. Será possível que até na rua aquela moça andava com o tal caderninho?! E ela estava, não conseguia sequer imaginar o que teria naquele caderno, seria um diário? Acho que não, já estava bem grandinha para escrever segredos de menina em diários com cadeados, e todas aquelas coisinhas que garotinhas entre 9 a 10 anos gostam. E por que não?

Descemos na mesma estação, e em meio à multidão, naquele empurra, empurra, vi que algo havia caído de dentro do seu diário, ou caderno, o que quer eu fosse, no momento nem me importei, eu só queria pegar para devolver, seria a grande chance de me aproximar dela. Corri em direção ao objeto que estava sendo pisoteado, era uma folha toda amassada, e suja, muita gente passou pisando, e quando levantei meus olhos para procurar a garota que eu desejava tanto conversar, ela já tinha sumido. Guardei a folha em meu bolso, e segui para o serviço, como nesse dia não tive aula, fui direto ao banheiro, tomei um banho demorado, comi algo, deitei olhando algumas mensagens no celular, e de súbito pulei da cama quando lembrei do papel, fui mais que depressa direto no bolso da calça que já teria colocado na máquina para lavar, por sorte, tinha me esquecido de ligar a máquina. A curiosidade não me deixava dormir, dava para perceber que tinham muitas coisas escritas naquela folha, e depois de algumas horas rolando na cama, e papel na mão, decidi ler o que tanto aquela menina rabiscava. Sei que fui um curioso (risos), mas não consegui me conter. Segue a leitura do papel....

“Chovia muito naquela noite, o barulho do vento misturado à chuva não me causava mais tanto pavor quanto antes tivera. Deu até vontade de sair e me molhar um pouco, e por que eu faria isso? Crianças não podem se molhar na chuva, muito menos um adulto! Queria muito me molhar aquele dia, lavar-me os cabelos, sentir a pureza que caía do céu escorrendo por todo corpo, mas isso era demais para mim. Como pode uma hora dessas parada no meio da tempestade, poderia pegar um forte resfriado! Foi então que me surgiu a ideia de abrir as janelas, e deixar o vento e a chuva entrarem no meu quarto, poderiam bagunçar, inundar tudo, seria um prazer, pelo menos aqui dentro ninguém sabe, ninguém vê, eu nem iria adoecer, lá fora sim, é o que todos dizem, mas aqui eu podia. Resolvi abrir logo todas as janelas da casa, o vento assobiava passando entre as cortinas, parei defronte em uma das janelas, e recebi em meu rosto os grossos pingos de chuva, que escorriam pelos meus cabelos, e desciam pelo meu corpo, uma sensação indescritível, pois ao mesmo tempo em que parecia estar apanhando dela, sentia que acariciava-me a face.

O frio daquela tempestade mudava meus lábios de cor, de um incrível rosado, rapidamente se tornavam roxos, mas isso não me incomodava, eu adoro me sentir uma metamorfose, e por dentro ia tudo bem, estava aquecida, apesar do sereno que vinha de fora. Comecei a conversar com a chuva, não que fosse uma louca, mas sentia que de algum modo ela me entendia bem, contei-lhe algumas ideias, como foi o meu dia, planos, muitos planos para o futuro, e quando terminei, ela se foi também. Fechei as janelas, e fui tomar um banho, não arrumei a bagunça, e nem retirei a água do chão, deixei que o sol do amanhã fizesse isso por mim, que aquecesse e levasse toda aquela água de volta, assim saberia que parte minha estaria evaporando também. Enquanto a bagunça? Ah, a gente vai arrumando aos poucos, cada coisa colocada em seu lugar, são minutos que viram poeira, e retornam ao pó... Naquele momento, só queria tomar um banho quente, uma xícara de café fresco, deitar em minha enorme cama, e dormir sem ter hora pra acordar, um sono tão bom, que talvez quem sabe, pudéssemos chama-lo de “o repouso dos justos”, e que o sol do outro dia se encarregasse do restante.

Tudo passou tão depressa, e quando me dei conta, já eram 9h00, o sol já deitava sobre meu corpo, galo cantando, automóveis passando, pessoas conversando, rindo, brigando, chorando, o martelo do vizinho, as crianças, e os pássaros também. O barulho do mundo me acordava, uma sinfonia que estremecia-me todo corpo parecia me puxar da cama, por um instante cheguei a pensar que tudo tivesse sido apenas mais um de meus delírios, senti uma pontada do peito, e saí correndo para verificar se apenas sonhei, e para a minha surpresa, o caos da noite anterior ainda estava lá, só a água tinha ido embora com o calor do sol! Fiquei radiante de felicidade quando observei que em cima da mesa tinha um copo com água, e algumas pílulas que esse pessoal insiste em querer que eu tome, vi que havia esquecido de toma-las, isso me causou um certo alívio, mas já vou explicar: É que prefiro sentir a minha loucura mais lúcida possível, do que aquela estancada pelo medo, e que precisa ser controlada pelo simples prazer de te manter preso, e isso ninguém entende, ou talvez nem queiram, e eu as vezes compreendo, só não desejo ficar sempre presa aqui dentro, por isso que deixo a chuva, o vento, as águas, os raios, e o barulho dos trovões entrarem a noite em meu quarto, se eu não posso senti-los do lado de fora, aqui dentro ninguém pode impedir, e só assim, me sinto verdadeiramente completa...”

A partir do dia em que devolvi aquele papel nas mãos de Alice, nunca mais pudemos voltar a ser o que éramos antes, ela se tornou a tempestade mais linda que eu jamais sonhei, e eu o que ela sempre gosta de dizer “o sol que deita sobre seu corpo todas as manhãs”, que dar cor aos seus lábios, evapora suas águas, fazendo-a chover sobre mim todas as noites. Alice nem precisava escrever tanto, a sua alma feminina sempre foi vida e poesia contínua...