Pai, eu...

– Pai, eu...

“Agora não, filha. Papai tá atrasado. Mais tarde a gente conversa.” Caramba, e essa droga desse relatório! Onde tá a porcaria das chaves?! É melhor que o Arnaldo tenha feito o relatório... e se o pulha não fez? “Maria! As chaves!?”

– Tão no armário da sala, seu Clóvis!

As chaves... Tá... melhor eu ir andando...

– Pai, eu...

“Mais tarde, filha. Mais tarde...” Se bem me lembro, o Arnaldo... é... putz, é mesmo... o relatório preliminar... ah... acho que deu... o Arnaldo... O que é que ele tinha dito mesmo? Tá... Acho que se eu for pela Getúlio eu pego menos trânsito... Segundo a Beatriz, o setor de eletro teve uma queda de sete por cento... é... foi, com certeza... Foi o Arnaldo que me disse isso? Não, não... Foi a própria Beatriz. Se bem que o Arnaldo... isso foi ele... me disse que o de brinquedos, do Ricardo, aumentou nove ponto dois pontos percentuais... Quanto era mesmo a meta!? Droga de cidade! Tá tudo entupido!! Nem a Getúlio, saco... Aumento de três e meio... É... aumento de três e meio nas vendas... O Arnaldo talvez tenha razão... droga de dólar... os eletros ficaram muito caro... Não sei não... acho que os brinquedos... e... o que mais, mesmo? “Porra! Anda!!” ...os livros e os cds... roupa deu uma leve subida... Quanto foi mesmo que a Sônia adiantou? Ah... um ponto quinze... é... Ônibus escolar... as crianças vão numa boa pra aula... mal sabem que suas preocupações vão se tornar piores quando crescerem e que vão querer voltar a ser criança... Que é que a Lúcia queria? Devia ser nada... Meu Deus! Que horas que é a reunião?? O plano de metas do próximo trimestre! Eu passei o relatório pro Arnaldo e o plano... o plano... o Jonathan... ficou com ele... Precisa organizar melhor suas idéias, Clóvis... Desse jeito você pira... “Tá cego, caralho!? O sinal abriu!” Retardado... Lúcia... como cresceu... As crianças crescem e a gente quase nem vê...

Passar no setor da Beatriz... não posso me esquecer... Ainda bem que a reunião foi tranqüila... Tá... não atingimos os três ponto cinco, mas, dois ponto noventa e sete tá bom... Depois do dólar, o seu Hélio queria o quê, também? Putz...! Coitado do Chiquinho... Pelo menos vai ser o Ricardo que vai ter que dar a notícia bomba... Eu não queria estar na pele dele, agora... O que é que a Lúcia queria?? Espero que não seja bomba... só faltava... Cadê o Pedro, que não tá no balcão? “Maria Cristina, cadê o seu Pedro que não tá aqui?”

– Ele foi no banheiro, seu Clóvis.

Ele vai muito ao banheiro... “Tá... Tá tudo bem...” Ele, realmente, vai muito ao banheiro... O Chiquinho e o Ricardo... Coitado do moleque... tão bonzinho... Essa história de ter que cortar o mais recente no emprego porque não se alcançou a meta é muita... muita sacanagem... E coitado desse moleque... que idade ele tem?? Acho que uns quinze... é... a idade da Lúcia... Aquele ‘Pai, eu...’ hoje de manhã tá me deixando encafifado...

– Então, Clóvis, acho que é isso...

“Tudo bem, Beatriz. Semana que vem eu quero um outro parecer e espero que seja melhor que esse.” Espero, mesmo.

– Eu não consigo entender isso, Clóvis...

“O quê?” Não vai me dizer que...

– Ali, tá vendo? Aquela menina...

“Meu Deus, tão nova... e grávida.” Meu Deus... Será?! Será que o que a Lúcia queria me dizer hoje de manhã era isso? Que... que ela tá grávida!!? Minha criança... grávida!!?

– Mais alguma coisa?

“Não, obrigado. Só mesmo o café e a conta, por favor.” Que delícia de pirão... Acho que vou vir aqui mais vezes... Boa dica do Arnaldo... Que casal mais grudento... Ei! É só uma menina...! Velho idiota... O cara deve já ter seus quarenta... e ela..., o quê? dezesseis, dezessete...? E nesse agarramento descarado..., no meio de um restaurante... Credo, Clóvis... Tá ficando velho, meu? Reclamando desse tipo de coisa... Você nunca foi disso... Lúcia..., minha filha... Será!? Mas ela só tem quinze anos... E se um velho tarado desses andou te agarrando e prometendo mundos e fundos...? Só faltava... o meu anjinho, grávida!...

Por que tinham que consertar esse banheiro, hoje? Agora vou ter que andar meio quilômetro pra fazer um xixizinho... Nada mais sacal... É bom a Sônia voltar logo com a resposta... o seu Hélio quer tomar a decisão ainda hoje... Que cheiro é esse? Eu conheço esse cheiro... “Tem alguém aí?” Melhor eu dar uma olhada... isso é maconha... “Saía já daí, quem quer que seja, ou vou chamar a segurança pelo rádio!”

– Faz isso não, seu Clóvis...

“Pedro!? Vamos, seu moleque. Vem comigo.” O Pedro... Pombas! Esse moleque parecia ter tanto futuro... E essa agora... Melhor demití-lo sem alarde... Se não a imagem dele... Foda-se a imagem dele, maconheiro de merda! Espero que a Lúcia não teja metida numa dessas... meu Deus... ou tá?

Que dia cansativo... Pelo menos consegui que o Chiquinho voltasse... Só espero que não faça que nem aquele maconheiro de merda... E a Lúcia...? O que será que ela queria de mim? Clóvis, você tem que ser forte, meu... Não interessa a notícia bomba que ela tenha, você tem que ser compreensivo. Ela vai precisar da sua ajuda. “Não olha por onde anda, não? Seu mané!!” Que filho da puta... Paciência... paciência...

– Oi, pai!

“Oi, filha... Vem até o meu quarto um pouquinho...” Espero que o problema seja possível de se contornar... Também, trabalhando como eu trabalho... Eu preciso passar mais tempo com ela. Acho que depois da morte da Suzana, eu me escondi do mundo no trabalho... até aquela promoção eu consegui... E por causa disso, acabei deixando minha menina de lado... Que foi que eu fiz, meu Deus?! A culpa por isso tudo é minha... só pode ser minha... ela é uma criança, ainda... O que é que ela sabe da vida? “Filha, hoje de manhã você parecia querer me dizer alguma coisa... O que foi, meu anjinho?”

– Ah...! É que eu vi você tão atarefado, com a cabeça trabalhando a mil, sempre se preocupando em não faltar nada pra mim... que me deu vontade de dizer: Pai, eu te amo!

David Scortecci
Enviado por David Scortecci em 25/10/2005
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