Coração de vagabundo

“E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça

daquela vida.”

Jorge Amado

A lua na sarjeta era o nome do livro. Fiquei olhando pra ele. Descobri que é bem melhor olhar para o livro do que olhar para os manos que me perseguiam. Enganei eles direitinho. Entrei na biblioteca em vez de entrar no bar ao lado. Vasculharam tudo, o dono do bar me falou. A moça, de óculos, ainda disse:

-Hei moço, precisa fazer uma ficha!

-Não quero ler, não.

Horas mais tarde enquanto caminhava gingando e enfumaçando a mente senti um baque no ombro e ouvi o estampido do tiro. Corri adoidado como se tivesse seguido por mil cães.

-Peraí, vacilão!

-Vai morrê, vai morrê!!

Corri e o mundo se fez pequeno diante de mim. Os caras corriam bem. Perdi as contas dos muros que pulei. Não olhava para trás, mas sentia que eles estavam tão próximos como a lua cheia no céu. Aí então tropecei. Corri caindo e sobre mim caíram pragas e munição.

-Vai cumê capim!

-Cum a boca cheia di furmiga!

Rolei ziguezagueando pra lá e pra cá, pra frente e para trás enquanto os zumbidos surdos das balas espoucavam no barro branco. Contei os disparos: cinco. Rolei ribanceira abaixo cortando a cara no capim-navalha. Parei enroscado num arbusto seco. Ouvi quando um deles mandava a ideia pro outro:

-Vamu ‘imbora, esse aí já era!

-Si pá, tá vivo ainda...

Um apito de sirene atravessou a escuridão da noite e me manteve vivo. Ouvi os passos deles corre-correndo na direção da cidade. Desacelerei. Pude curtir o tum tum tum do coração a galope. Lambi o suor que me salpicava a boca. Vi que chegavam outros, diferentes.

-Tem gente lá embaixo. Focaliza ali.

-Parece um espantalho, o vagabundo.

Dois deles desceram com cautela enquanto um terceiro jogava um jato de luz nos meus olhos assustados. Não sei se é pior morrer ou falar pra eles porque queriam me matar.

-Segura minha mão aí, vaso ruim!

-Me ajuda senhor, me ajuda!

Um policial magro e alto puxou-me pelo braço enquanto o outro o puxava também e assim subimos os três como um trenzinho emperrado. Lá em cima algemaram o que sobrou de meus braços. Colocaram-me na gaiola e partiram com a sirene ligada. Na boleia discutiam.

-Hospital ou delegacia?

-Queria ir pra casa, jantar...

Tremia enquanto a viatura cortava norte-sul a quebrada dos manos. Eles estavam lá em algum lugar. Meu corpo todo via, como um telescópio manipulado por um louco, um inimigo dentro de cada blusão parado na esquina. Os outros adivinharam o meu medo e reduziram a velocidade. A viatura desacelerava. Um deles se virou para mim.

-Você aí, vai falar ou quer descer aqui?

-Eu falo, eu falo, longe daqui.

Ligaram a sirene e aceleraram. Cruzamos os semáforos a mil e o suor do meu corpo se empoçava nas nádegas que batia no assoalho metálico. Distanciamos da vila em direção ao centro. Eu teria mais cinco minutos para mentir e sair ou falar a verdade e ficar preso. Escolhi, a contragosto, a segunda opção.

-Na delegacia é mais seguro, não é inocente?

-É mais saudável, senhor.

A viatura parou lentamente. Os dois desceram e me conduziram até o plantonista que, com cara de sono, me pegou pelo pescoço. Já sabia o que ele ia dizer mas, incrivelmente de bom humor, disse outra coisa e acenou para o colega.

-Parece que brigou com um galo.

-E o galo venceu.

Riam absortos enquanto o plantonista fazia o procedimento de praxe. Não liguei para ninguém, pois ninguém me conhecia. Então, me conduziram por um corredor estreito no fim do qual havia uma salinha. Encostaram-me contra a parede.

-Agora, pode cantar...

-A tv, o celular e o relógio escondi no quarto 03 do Manga’s Hotel.

Levei um tapa tão grande no pé do ouvido que pensei que ia perder a cabeça. Antes de cair de lado, levei outro que me fez balançar numa perna só. Por fim, levantaram-me pelo trapo da camisa e me empurraram para o fundo de uma cela úmida e enfumaçada.

-Fica aí seu ladrãozinho, merdinha!

-Esse daí me tirou a janta, mas não a fome.

Correram o ferrolho, apertaram o cadeado e me deixaram com uma puta dor de cabeça. Tentei colocar os pensamentos em ordem. Amanhã vou passar pela audiência de custódia. Tenho vinte e quatro horas para apresentar minhas desculpas ao juiz. Encosto-me à parede e estico meu braço dolorido para o lado. Alguém me passa uma Maria-louca. Bebo um pequeno gole e fico olhando o reflexo da lua no piso úmido. A lua axadrezada.

make
Enviado por make em 02/06/2018
Reeditado em 25/06/2018
Código do texto: T6353056
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