A mágica

A mágica estava feita. Dezenas de bebidas, garrafas semi-abertas e a minha timidez ameaçada. Dos meus pensamentos sobressaía-se um arco rubro-champagne, tonalidade inconfundivelmente afrodisíaca. Mistura na qual eu temia ousar beber. A mesa de madeira marrom-vinho com verniz intacto tinha uma faixa vermelha como que fosse decoração das festas antigo-comemorativas. Uma perturbação ao meu foro. Eu estava entre o cruzamento de duas estradas que não sei onde me levariam, não decidi sobre nenhuma. Sentei e pensei, no fim, não pensei em nada.

Do outro lado da mesa um olhar me chamava a atenção. Não me admirava e às vezes me amedrontava de tão inofensiva. Ela tinha cabelos loiros e lábios cintilantes. Seus cachos deslizavam sobre os seus ombros e era impressionante o quão glamouroso era o júbilo que eu conseguia ver irradiar da sua beleza. Talvez ninguém a notasse como eu a notava. Talvez ninguém acreditasse no que eu formulava na mente, mas talvez mais alguém a amasse da forma que eu lutava para a amar. Era linda.

Voltei para mim mesmo e tentei lembrar da minha fisionomia. Com um pouco de defeitos a mais, eu não era muito além de um cara magrelo qualquer. Por dentro, nada de impressionante, às vezes expressava um romantismo que não condizia com a época, quadrado e exagerado. Nas mãos magras segurava um buquê de rosas. No rosto forjava um sorriso. Devo parecer ridículo, imaginei. Ela sorriu e eu a entreguei.

A distância era centímetros da madeira meio retangular. Nada deveria dar errado em um gesto que não duraria mais que cinco segundos, mas a minha estupidez não me permitiria fazer sem parecer um estranho desajeitado e sem a menor cordialidade. Quase derrubo a garrafa do vinho mais nobre que já estive diante. Depois do susto a garrafa ficou em pé. Rimos, meu rosto corou.

De volta ao meu foro, sou culpado por tantas escolhas jogadas à mesa. Pegaria uma cerveja alemã, a mais amarga, ouviria os ruídos de guitarra e conversaria com meu cigarro, filosofia, sexo, música, sei lá. Como antecipar o problematizar das entrelinhas. A previsibilidade não me dava um tempo, era as horas, o tic-tac que eu tornava audível no meio da converseira, condicionava a mim-mesmo.

Ela era totalmente o oposto de mim, eu era a tempestade, ela abria o guarda-chuvas. Ela era o motivo para comemorar e eu o tédio da vida. Era alegre, eu sempre sério. Extrovertida, eu introspectivo. Sempre arrumadinha, e eu não via necessidade de passar as minhas camisas xadrez ou mudar a cor da minha calça jeans. Sem tardar, os opostos faziam a gente equilibrar o peso da balança.

Os presentes não acabavam por aí. No meu bolso senti o volume da caixinha bem pequena que guardava ouro de verdade. Olhei novamente aos seus ombros suavemente delicados e inevitavelmente mergulhei no volume dos seus seios naquele vestido rosa claro. Ousados exibiam-se de forma instigante, meus hormônios aceleraram. Mas quando voltava meu olhar para o seu rosto. Lá estava aqueles olhos meigos que riam, me obrigava a rir também.

- Você é louco. - ela disse.

O timbre da sua voz me levou ao meu mundo mais perfeito. Um campo onírico onde a noite era quente, limpa e estrelada no meio da rua na cidade grande, a qualquer estação do ano. O abraço era o calor e fazia a chuva parecer uma explosão de gliter que refletia a luz da lua enquanto nos beijávamos, nos preocupávamos apenas em manter um corpo bem grudado ao outro.

- Você está linda hoje. - ela sorriu com um rubor nas bochechas. - Te diria isso todos os dias se você aceitasse me ter em sua vida todos os dias.

De volta ao meu foro eu me sentenciava a voltar para casa embriagado, choramingando. De frente ao espelho perguntava qual o meu defeito. Meus olhos enchiam-se não de lágrimas, mais que isso, larvas de vulcão. Era o que uns chamam de alma, outros de coração, eu não chamo de nada. Eu sou matéria do nada. Insignificante e efêmero, uma frase curta, sem nenhum efeito.

Todos os meus inimigos não eram suficientes para que eu deixasse de encarar a mim-mesmo como o pior de todos eles. Eu sempre esperava o pior de mim, nada além disso. Sentado em dúvida diante os dois caminhos eu simplesmente acendia um cigarro. Inspirava a fumaça e era como uma música. Morte triste.

- Você é um fofo! - respondeu levando a taça aos lábios. - Sabe de uma coisa?! - prosseguiu depois de dar um gole. - Eu adorei muito esse jantar, mas queria um lugar que pudéssemos dançar.

- Eu não danço.

- Bebe um pouco que você dança sim.

De todas as opções, ao menos o ceticismo eu tinha certeza. Duvido que respiro. Igual ao pensamento racional, mas não sei nem se existo. Sei que penso demais, mas nem ao menos uma das estradas consigo decidir. Escuto a mim mesmo ou deixo-me convencer-me?

- Sem chances. - ri engolindo um pouco do vinho tinto da minha taça.

O que eu negava mesmo? Negava as chances diante da mesa. Antes que das garrafas secarem, nada tinha muito sentido, depois que bebemos cada gotinha, as coisas continuaram sem sentido. Entretanto ela tinha mais razão que o eu-mesmo. A música quase estourava meus tímpanos, mas parecia arrancar de mim movimentos estranhos que mais pareciam manipulados porque todos ao meu redor faziam, inclusive ela.

Ela tinha uma luz sobre si que era um jogo de cores vivas neon que oscilavam do verde, azul ao vermelho. Me dava uma sensação aceleradíssima, como se todo líquido dentro do meu corpo tivesse secado e meu estômago jogava o resto que sobrara para fora e minha garganta empurrava de volta para dentro.

Ela estava perfeitamente bem. Dançava loucamente como se estivesse leve e era o ar quem comandava os seus movimentos. TInha um sorriso no rosto que não se desfazia, um contorno branco luzia dos seus dentes e o seu diastema era o mais atraente. Seus cabelos balançavam de um lado para o outro.

Tomou minhas mãos como se quisesse que nos colássemos. Eu ousei roubar um beijo dela e em seguida ela fez círculos segurando os meus braços. O êxtase, como ela disse antes, me envolvera como se eu não tivesse autonomia sobre o meu corpo. Exceto pela minha mente incansável que me dizia a todo momento que eu sentiria uma enorme vergonha quando acordasse.

Nas minhas alucinações estava eu em um dos caminhos que antes eu não conseguiria saber qual seguir. Andei sem mexer os pés, decidi sem comunicar-me com o eu-mesmo. Era levado pelo vento festivo jovial que tornava-se visível enquanto dançava na atmosfera de uma rua desolada. Não sentia medo, apesar da solidão. Faltava palavras, apesar da mente acelerada. Parecia que ao fim daquele caminho, algo bom me esperaria. Era ela, sem dúvidas.

Minha cabeça estava pesada e senti que cheguei ao ápice e não conseguiria empurrar para dentro do estômago de novo. Cheguei bem próximo do ouvido dela e me esforcei para segurar um instante mais.

- Acho que exagerei. - disse.

- Eu também.

Mais tarde, sua gargalhada fez uma sonzeira estridente, numa rua de esquina a um grande prédio, onde os ventos eram sonoros e bem distante ouvia-se o rasgar dos carros no chão, apenas. Tudo completamente abandonado, na madrugada, só eu, ela e a lua. Louca de tudo, gargalhava incontrolavelmente que chegava a fazer eco. Enquanto eu estava em pé gritando e dançando. Narrava exatamente como tudo aconteceu, sem esquecer um mínimo detalhe sequer. Imitava a sua dança e em seguida o movimento desesperado para se afastar da aglomeração ao nosso redor e vomitar um arco-íris mastigado e ácido.

Olhei para ela meio jogada na calçada, sem se preocupar com a sujeira que estava o seu vestido. De rosa claro, parecia uma mistura de marrom com salmão. Seus cabelos estavam todos emaranhados e sua maquiagem derretia dos seus olhos vermelhos incapacitados de manterem-se fixos por um minuto num ponto só, até as bochechas pálidas.

Ela não se envergonhava em nenhum momento, nem quando tomava consciência de que não estava agradavelmente bem-vista. Isso me colava diante ao eu-mesmo novamente. Eu comecei a rejeitar-me a pauta do meu foro. Era uma voz berrante dentro de mim que a qualquer instância, conseguia me fazer parar. Era como se esse tal eu-mesmo fosse o meu limite.

- O que foi? - ela disse meio zonza.

- Acho que tinham muitas coisas naquela mesa. Não sei me decidir.

Ora eu a amava, ora não sabia dizer se era digno de falar de amor. Ora eu a desejava, e quase sempre me controlava para pensar que não a desejava. Queria cerveja, mas bebia vinho. O vinho não era ruim. Ela dizia que eu dançava, mas eu não podia dizer o mesmo. Eu me traí mais mil vezes e a cada traição, de volta estava ao cruzamento das duas ruas.

- Mas você não escolheu nada. Bebeu tudo o que tinha. - riu.

- Talvez devesse me arriscar.

Tudo ficou em silêncio uns minutos depois.

- Venha cá. - direcionei minha mão aberta à dela. - Se levante!

Ela tomou minha mão e ficou inerte de frente para mm. Tirei do bolso as alianças. Seu olhar brilhou. A previsibilidade pela primeira vez foi traída.

Tom Henri
Enviado por Tom Henri em 17/06/2018
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