Nêgo

Nêgo ficou um tempão bebendo cachaça com cambuí, aquela frutinha redonda comum no litoral norte da Bahia. “Cambuísque”, definia o birosqueiro e todo mundo achava engraçado. Papo de futebol, Bahia e Vitória, Copa do Mundo que se aproximava. Birosca minúscula, mal cabia duas mesas metálicas. Engenhoso, o comerciante acoplara aquele comércio à casa onde residia no bairro popular de Salvador. Nos fundos, ribanceira e resquícios de Mata Atlântica.

De vez em quando, entornavam uma mistura de cachaça com vinho de catuaba. A tarde, nublada, findava. Pelos olhos de Nêgo, intuíam a embriaguez.

- Saideira – encomendou, com voz trôpega.

Depois foi saindo com o companheiro de jornada, um primo adolescente. O garoto aventurava bicadas só na catuaba. Sentia o sabor forte na língua e um leve torpor. Lá adiante, numa barraca metálica enfeitada de bambus, arriscaram duas cervejas. Chovera, a bebida descia chocha. Mais umas doses de “cambuísque”. A noite caíra muito preta, ali, na periferia de Salvador.

- Pra casa – decidiu, depois de esvaziar o copo.

Baixo. Barbudo. 33 anos, gente boa. Morava com o pai num apartamento de prédio popular ali perto. Desempregado. Bebia muito. O velho, que fora alcoólatra, já dormia. Bateram e nada. Vigorosas batidas. Nada. A porta balançava e nada. Desistiram. O velho era iracundo, poderia acordar furioso.

- E agora? É dormir no sítio de Zé – decidiu Nêgo, com a anuência do adolescente. Zé era antigo parceiro de copo.

Longa caminhada. No caminho, compraram comida num mercadinho que teimava aberto: linguiça fina, ovos, sardinha em lata, cebola e tomate, a farinha para a farofa. Desjejum para a noite atípica.

Uma mochila abrigava os víveres. Escuridão e silêncio impressionantes à medida que deixavam para trás os prédios pobres, iluminados por tristes lâmpadas elétricas. Trafegavam no trecho aonde abundavam sítios e pequenas propriedades, nos limites da periferia.

Na escuridão, sob a sombra das árvores, o cheiro denso dos cajus e cajás, das jacas que amadureciam, das mangas que se multiplicavam feito praga. Os chinelos chapeavam na areia fina, típica daqueles ermos soteropolitanos. Muito silêncio nas primeiras chácaras. A luz dos postes era melancólica. Lá adiante, bateram palmas.

- Fala, Zé – cumprimentaram Zé, sonolento. Preparava-se para dormir. Era caseiro ali. Ganhava uns trocados, dormia num quarto imundo, sobre um colchão infecto. Alcoólatra, mas estava meio sóbrio naquela noite perdida.

Numa trempe precária, na frente do sítio, esquentaram a sardinha, fritaram ovos e linguiça, com cebolas e tomates toscamente cortados. Misturaram tudo com a farinha, comeram com sofreguidão, agachados, lá fora. Os pratos emprestados eram de alumínio, as colheres, de metal fosco.

- Vai, Zé? – Ofereciam. Zé recusava. Jantara, já.

- Só faltou o guaraná – lamentaram.

Depois foram se ajeitando para dormir ali mesmo, na sala. Papelões que embalaram geladeiras serviriam de colchão. Sob os papelões, tijolos, que cumpriam a função de travesseiros improvisados. Surgiram dois lençóis muito gastos, diáfanos, mas limpos.

A luz acesa atenuava a voracidade das muriçocas.

O adolescente, acordado, cismava. Telhado infestado de cupins e teias de aranha. Lá fora, silêncio. Zé e o primo ressonavam. Pensava naquele desconforto. Examinava tudo com olhos muito abertos.

Descontando a cama velha e o colchão sujo, havia pouca coisa. A geladeira amarela não funcionava; o fogão era a trempe improvisada lá fora; as roupas encardidas e gastas repousavam numa caixa de papelão. Duas decrépitas cadeiras de madeira serviriam para acomodar improváveis visitas. Os poucos trastes domésticos amontoavam-se num armário de cozinha que se decompunha. Nem mesa havia.

O pensamento vadiava ainda quando ouviu Zé levantar, sorrateiro. Fingiu dormir. Ouviu passos leves, que atravessaram a sala silenciosamente.

Foi à cozinha. Lá, cauteloso, desentocou algo. Sons abafados, mas o cheiro da aguardente, irreprimível, se espalhou, chegou à sala. Tomou um gole largo, cuidadoso.

Depois, discretamente, voltou para dormir, os olhos cintilantes, expressivos.