A Conversão

“Pardal” bateu a carteira do estudante em frente à Igreja Batista e correu enquanto aguentou. No começo disparou, dobrou a esquina da subida do Sobradinho e desembestou pelo trecho de declive suave. Quem dera ter asas! Mas as calças folgadas atrapalhavam, perdia forças e a multidão, furiosa, se aproximava com rapidez.

“Ladrão! Ladrão!”, gritava um estudante de bermudas, tênis e pernas vigorosas que ia vencendo com facilidade a distância que o separava de “Pardal”, que cerrava os punhos e corria, alimentando com o desespero a esperança de escapar das dezenas de perseguidores. Nada! Ia era perdendo terreno, pelos cantos dos olhos percebia os vultos ferozes crescendo, arfando, sequiosos por vingança.

“Pardal” já queria era que aparecesse uma viatura, porque, pelo menos, escaparia da fúria dos perseguidores.

Vã ilusão! Quando dobrou mais uma esquina, esperançoso de enganar a multidão (o que era impossível), se deparou com três sujeitos parados dez metros adiante. “Pega! Pega!”, gritou o estudante que liderava a perseguição. E o pegaram, quando tentou dar um drible patético e desesperado. Mãos tenazes e agitadas se fecharam em seus braços febris, trêmulos. Três pernas frenéticas aplicaram-lhe rasteiras, laçando-o sobre o calçamento irregular.

Em seguida, uma multidão de pernas enfiadas em calças jeans o atropelou. Até se chutavam, na tentativa ensandecida de atingi-lo. Um caiu e foi pisoteado pelos parceiros. “Pardal” só podia proteger a cabeça e pedir a Deus que um samaritano ligasse para a Polícia Militar.

Mas a multidão só se satisfez quando o deixou coberto de hematomas e com a roupa em frangalhos. Apareceu até um idiota lutador de jiu-jitsu para imobilizá-lo. Como se ele estivesse em condições de fugir...

Embora lhe faltassem dois dentes e um olho estivesse fechado, um braço dolorido e com uma costela fraturada – o que constataria depois – “Pardal” até estava feliz: apanhou mais quando deu outro bote desastrado meses antes.

Naquela noite de triste lembrança agadanhou o maço de notas que um joalheiro contava no Mercado de Arte, no centro da cidade. Só não imaginava que uma turma que bebia cerveja em uma barraca próxima conhecia a vítima e ia sair em seu encalço. Ali se danou: corriam a três metros e a fuga foi breve. Escapou de uma tábua arremessada ao dobrar uma esquina, mas esbarrou em um transeunte: derrubou o desgraçado e quase cai também. Só não caiu porque mãos vorazes o ampararam, para em seguida moê-lo de pancada. A viatura só chegou trinta minutos depois, quando jazia desacordado, sobre a calçada de pedras portuguesas.

Foi autuado em flagrante e passou uma semana internado em um hospital público. E surpreendeu o sargento que o conduziu ao hospital, ao entrar andando na delegacia – mantendo-se a custo em pé, mas andando –. “Ainda vivo, malandro? Você deu sorte! Puta que o pariu!”.

Desconsiderava as pancadas da polícia: era passivo permanente da profissão. Agora, apanhar das vítimas, desmoralizava. Pensou nisto enquanto aguardava a viatura, olhando a lâmpada alaranjada do poste de iluminação e com o braço torcido pelo troglodita. Estava era perdendo a consideração da malandragem com aquelas surras, vítima de chacotas na carceragem da delegacia.

“Vou aceitar Jesus Cristo, é o jeito. Vou seguir o que minha mãe vive me dizendo”, prometeu, com convicção.

Na delegacia tomou outra surra, quando melhorou dos ferimentos provocados pela multidão. Ficou 15 dias na carceragem, comendo comida fria de quentinha, sem banho de sol e dividindo o espaço com outros quinze sujeitos. “Puta que pariu! Não sei o que faço com você”, reagiu o delegado, revoltado com a nova detenção. Disse que iria remetê-lo para o presídio, para aprender. “Quando sair de lá, mando lhe matar”, vociferava, indignado.

Aceitou uma Bíblia e Jesus Cristo enquanto permaneceu preso. Orava na cela. Ouvia a pregação dos pastores no pátio do pavilhão. Manifestava uma insuspeita vocação profética. Participava de toda a liturgia religiosa. Virou um outro homem. Agora, temia a Deus.

“Você agora é um homem de Deus”, vaticinou um pastor, exaltado.

Na rua, descartou o Livro Sagrado porque carregá-lo o tempo todo incomodava. Mas via Jesus Cristo à sua frente, nítido. Depois voltou a beber. Às vezes, fumava maconha. Um dia, aspirou fartas carreiras de cocaína.

Jesus Cristo foi se diluindo.

Numa luminosa manhã de inverno, seus olhos pousaram num reluzente aparelho celular que uma distraída empunhava. Lembrou de Jesus Cristo. Mas esqueceu de Jesus Cristo. Seus olhos cintilavam.

Jesus Cristo era coisa para quando fosse encalacrado novamente...