Noite de Natal

Eram três. E era noite de Natal. Vieram descendo a ladeira suave, calçada com paralelepípedos azulados, muitos lisos, escorregadios. No entorno só havia comércio: lojas de materiais de construção, casas de ferragens, uma ou outra madeireira que o pó de serra acumulado na calçada denunciava.

Nas manhãs e tardes aquilo pulsava. Fregueses, pedidos, ordens, gritos, notas nas mãos, mercadorias que músculos retesados transportavam e embarcavam nos pequenos caminhões de entrega. À noite, porém, a ladeira repousava, exangue. Só ratazanas circulavam, atraídas pela comida despejada nas calçadas dos botecos sórdidos.

Na noite de Natal, porém, aquela solidão era abissal. Os trabalhadores que produziam aquela lufa-lufa estavam distantes, nas casas pobres das periferias. Compartilhavam a ceia magra da família. Os mais afortunados encharcavam-se de cerveja, os desgraçados chafurdavam na pinga. E, alegres, falavam aos berros, ouviam música em volume alto.

Longínquos, os sons de uma missa. À distância, a alternância monótona dos pisca-piscas que davam alguma vida à iluminação opaca das ruas. Na lonjura, a luz débil dos postes insinuava uma névoa impossível naquele verão recém-iniciado de noites abrasadoras.

O trio intuía risos distantes, conversas, abraços, beijos, a celebração inevitável. Mas estavam indiferentes. Sequer apuravam os ouvidos: cinquenta metros adiante o comércio rareava e antigas residências amiudavam-se, prenunciando os bairros humildes que se sucediam em direção à periferia.

- Vamos passar em “Zé do Peixe” e pegar umas cervejas – comandou o mais velho. Negro, cabeça raspada, barba descuidada. Os demais o secundavam: um porque era jovem e tímido; o outro porque já bebera, fumara maconha, cheirava cocaína e, agora, mergulhava numa letargia profunda.

“Zé do Peixe” fechava. Dois fregueses, inteiramente embriagados, esvaziavam a última garrafa de cerveja. “Zé do Peixe” despachou meia-dúzia de garrafas e enfiou numa marmita os restos de moela e passarinha que esfriavam no mostruário do botequim. Mastigariam aquilo na confraternização.

A porta e a fechadura sacudiam quando enfiaram a chave. Casa minúscula, porta e janela, telhado coberto por telhas velhas, manchadas pelo tempo, pelo sol e pela chuva. Uma lâmpada elétrica triste iluminou a sala minúscula. Quatro cômodos: dois quartos ínfimos, a cozinha apertada. Lá fora, no quintal pequeno, ficava o banheiro.

- Vamos comer água – convocou, animado, o negro, anfitrião. O que se drogara assentiu, num sorriso mole. O jovem aproximou o copo de geleia em sinal de concordância.

Foram ficando ali: mordiscavam a moela fria, afundavam os dedos na gordura da passarinha. Os copos se enchiam e se esvaziavam.

Pouco papo: o futebol, em recesso, não atiçava entusiasmo; o noticiário policial, comum nas cercanias, era vago, distante; relembravam casos antigos, mas o que se drogara participava pouco. Só sorria, aquiescendo com tudo. Os olhos pousavam nas paredes mal pintadas.

Foi caindo um silêncio desconfortável, quase constrangedor.

O jovem tímido pensava em natais alegres, mesas fartas, gente animada se confraternizando. Isso em ambientes espaçosos, seguros, bem iluminados. Os recantos da burguesia. Lugares sem a preocupação mesquinha do salário irrisório, das incertezas que podavam o futuro, da vida instável que se esgota no hoje. Foi ficando melancólico.

O negro, animado, puxava conversa, ria, tentava afogar a melancolia com a meia-dúzia de cervejas. Escorraçava o fantasma da tristeza com risos sonoros.

Os copos e as garrafas foram se esvaziando. Subia uma vaga inquietação. O subterfúgio se exauria e nas cercanias não havia, sequer, biroscas para renovar o estoque: todos em casa, alegres, animados, em congraçamento.

O que se drogara dormiu. Foi pendendo no sofá e só ajeitou o corpo.

- Esse está morgado – constataram.

Depois do último gole, o negro se animou: puxou do bolso uma nota de cinquenta. Podiam estender as cervejas madrugada afora. O jovem apalpou os bolsos, também guardava uns trocados.

- Mas onde vamos beber?

Na Mantiqueira havia o Bar de Robalo. Estava aberto, com certeza. Podiam esticar por lá, encomendar tira-gosto de sardinha frita com farofa, conversar com mais gente sobre a próxima temporada do futebol, estimulava o negro. Era uma caminhada de dez minutos.

Foram saindo. O jovem sentiu a brisa noturna do verão e espantou aquela melancolia. No céu, estrelas cintilantes.

E havia o álcool. Pelo menos ainda havia o álcool.

Saíram andando. Ainda na porta, o jovem chutou uma pedra, como quem tange o futuro incerto para lá adiante.