O Dr. Bacana e a água de sabão.

Havia um terreno em que a terra era bastante fértil, produzia tudo o que ali fosse plantado e cuidado. Àquela terra era rica em minerais, húmus e todo substrato útil a um bom desenvolvimento de qualquer planta que fosse plantada e cuidada. Era uma área plana, anteriormente irrigada por uma nascente que ficava um pouco distante, mas não mais que meio quilômetro. Contudo, o proprietário dessa área onde se localizava a nascente, havia derrubado toda a vegetação nativa e transformado aquele lugar em um extenso descampado. Nem precisamos dizer que a nascente, meses depois secou. Ali então, era necessário que alguém regasse constantemente as plantas para que não morressem por falta de água, principalmente nos meses de estiagem.

Havia naquele lugar plantas que se resolviam nascendo, crescendo, florescendo, produzindo frutos e sementes que caíam na terra e se regadas, nasciam e produziam novas plantas e o processo se iniciava novamente com todo o vigor de antes. Sempre houve um cuidador, que antes de seu próprio interesse, visava o interesse coletivo. Aquilo era de interesse da comunidade, e portanto, o interesse particular não encontrava lugar ali, pelo menos até aquele cuidador em particular ser o responsável por cuidar daquela área produtiva que beneficiava a todos ao seu entorno.

Ali brotava e eram produzidas e colhidas, ervas, tubérculos, raízes, leguminosas e frutos diversos. Haviam jabuticabas, pés de café peruano, laranjeira, limoeiro, abacateiro, araticum, murta, maxixe, quiabo, macaxeira, taioba, manjericão, malva do reino, pimenta de cheiro e malagueta, cidreira, capim limão, alfavaca, vinagreira, canapum, gergelim, agrião, grão de bico, hortelã, menta silvestre, alecrim, entre muitas outras.

Em uma manhã, o cuidador, não encontrou mais vigor para regar mais aquela área cheia de todas as mais variadas e úteis plantas. Desistiu de cuidar e simplesmente deixou o lugar, sua choupana, seus regadores, suas ferramentas. Ao fim da tarde foi embora. As pessoas agradeciam pelas diversas plantas que o mesmo cuidava e servia a todos, mas o certo é que não havia tido ajuda de qualquer pessoa durante todo aquele período em que viveu ali. O que nunca faltou foi muita gente colhendo um tempero, umas folhas, umas raízes, alguns frutos. E o cuidador, nunca cobrava, dizia que só queria ajuda de quem pudesse, para ajudá-lo a cuidar das plantas. Envelheceu, não foi ajudado por qualquer pessoa, se cansou e foi embora.

Nos primeiros dias as plantas começaram a murchar, por falta de água, pois a terra era rica em nutrientes, porém era necessário que fossem regadas constantemente.

As pessoas começaram a reclamar, dizendo “será que não irá aparecer nenhuma pessoa para regar e cuidar das plantas, tão úteis para todos nós?”, outros diziam, “as pessoas são egoístas, não aparece ninguém para cuidar dessas plantas?”. Ali próximo, havia uma cacimba de onde o cuidador todos os dias puxava dezenas de baldes de água para colocar nos regadores e regar todas as plantas, desde o dia em que a nascente secou. A mesma cacimba, era utilizada para as mulheres da comunidade lavarem a roupa, ou seja, dezenas de mulheres todos os dias lavavam a roupa suja de suas famílias. De onde se lavava roupa, para onde as plantas ficavam dava uns cem metros. E ficava em uma área ligeiramente elevada em relação a área das plantas.

Um certo dia, um morador da comunidade, mais esperto, acompanhando as lavadeiras, teve a ideia de fazer um canal que conduzia a água resultante do processo de lavagem das roupas até as plantas. A água de sabão era então conduzida até as plantas e o problema inicial de secura do solo foi resolvido.

O processo de regar as plantas era também, daquela forma, algo constante, pois todos os dias diversas mulheres iam até a cacimba lavar roupa.

Com o canal, a vida voltou àquela área de cultivo que tanto beneficiava a todos. Em pouco tempo, todas aquelas plantas revigoraram. O vigor voltou com toda a força e era novamente possível colher temperos, frutos, raízes e vegetais diversos. No entanto, agora o idealizador do canal, cobrava um pequeno valor pelo que era colhido pelas pessoas. “Nada mais justo”, diziam alguns, e outros falavam “desde que ele cuide, continuarei pagando”. Não lembravam que o idealizador do canal não havia feito nada mais do que propor a construção do mesmo, que foi feito com a utilização de enxadas, que não eram dele, mas sim do antigo cuidador. E o trabalho braçal havia sido executado pelos esposos das lavadeiras.

Logo o idealizador da utilização da água de sabão, começava a acumular alguns valores, resultado da venda do que aquela área produzia. Comprou uma motocicleta, fez uma casa de alvenaria, comprou roupas novas, ficou conhecido como seu Bacana.

Passaram-se alguns meses e muitas plantas começaram a amarelar as folhagens, ficarem entanguidas, ou mesmo não produzir mais frutos. As pessoas se perguntavam o que estava ocorrendo. Seu Bacana dizia que alguém com olho ruim havia colhido folhas, frutos, raízes e por isso, as plantas começavam a morrer. À partir dali, só ele poderia colher naquela área e vender o que era colhido.

Percebendo que o problema era devido a água de sabão, seu bacana fez um acordo com todas as lavadeiras, não iria mais deixar a água de sabão descer pelo canal, mas toda lavadeira deveria despejar seis baldes de água limpa, no canal, toda vez que viesse lavar roupa. Assim, resolvia-se o problema da água suja e as plantas continuariam produzindo, e ainda, em pouco tempo, o solo contaminado pelo sabão, iria ser limpo novamente.

Dito e feito, semanas depois, as plantas começavam a ter o vigor de antes e produzir com vitalidade. Seu Bacana, havia resolvido o problema, mais uma vez sem muito esforço e continuava lucrando. Com o dinheiro, além do que já havia adquirido, comprou o terreno onde se localizava as plantações e a cacimba. Mandou construir uma lavanderia e passou a cobrar de cada lavadeira, um certo valor pela utilização do espaço e da água da cacimba. Virou em pouco tempo, o Dr. Bacana, cheio do dinheiro e invejado por todos.

O Dr. Bacana entrou na política partidária, concorrendo logo ao cargo de prefeito da cidade onde se localizava a comunidade onde morava, sua fama de prosperidade havia se espalhado pela mesma. Era venerado e invejado. Não deu outra, ganhou com a maioria dos votos. Eleito prefeito, mudou-se para a cidade. Fez fortuna nos processos licitatórios e nos projetos mirabolantes. Mudou o foco de seu negócio e mandou arar a área onde se localizava as plantações e no lugar, plantou capim, cercou todo o terreno e colocou gado bovino. Ainda manteve a cacimba, de onde por meio de uma bomba d’água retirava água para o gado. Vez ou outra, ainda ia uma lavadeira lavar roupa ali, mas somente às que não haviam perfurado um poço, com recursos próprios, em seus pequenos quintais.

Tudo havia mudado e quando alguém queria temperar alguma comida com condimentos variados, tinha que ir até a feira da cidade ou ter plantado em poucas variedades em seus pequenos quintais. Tudo realmente havia mudado, o Dr. Bacana, não conhecia mais as pessoas da comunidade, não visitava mais a comunidade e havia casado com a filha do Deputado Federal, maior fazendeiro da região. Tudo realmente havia mudado, seu eleitorado se concentrava agora em toda a região e não mais apenas em sua antiga comunidade ou em sua cidade. Já pensava candidatar-se a Deputado Estadual, com apoio do sogro e utilizando o antigo codinome que havia recebido quando deu a ideia do canal de irrigação: “o solucionador dos problemas, o benfeitor do povo”.

Ninguém nunca mais havia falado no antigo cuidador, que fazia seu trabalho pelo bem de todos, que nunca exigiu nada em troca, nenhum valor monetário, que plantava, regava, cuidava e dedicava todo o seu tempo e trabalho àquele povo. A única coisa que queria era que o ajudassem a regar, apenas regar, nada mais do que regar. Aquele pobre homem morria em um certo domingo de outubro, sozinho, doente, esquecido, morria no mesmo mês em que, o Dr. Bacana, era eleito deputado estadual e já começava a sonhar com a presidência da república. Seu sogro, todo satisfeito, dizia assim: “esse chegará ao Palácio do Planalto, com toda a certeza, pois esse sabe conquistar o povo”. Nem lembro qual era o nome do antigo cuidador daquela área de plantas tão verdejantes, bem cuidadas (em sua época), úteis e belas. Aquele homem de coração bondoso, morreu sozinho e esquecido.