Alcuno

Um pombo branco com manchas cinzas sobrevoa a canaleta do ônibus expresso. Aproveita o vento e plana até decidir pousar.

Um rapaz louro com um boné marrom observa da janela do ônibus o pouso de um pombo branco com manchas cinzas. Ele está triste. Ele sabe que poderia ter ido melhor, afinal, estudara uma semana. E sua mãe viu sua dedicação. Estava tão orgulhosa. Ele não sabe como vai contar que não conseguiu, que vai mesmo pra final. Ele lembra quando sua mãe, devia ser umas cinco horas da tarde, lhe levou uma bandeja com leite, algumas bolachas e uma maçã, pedindo com candura que parasse pra se alimentar. Sua tristeza era muito mais pela mãe do que por ele. Ele pode estudar de novo e sabe que consegue.

Uma garota de cabelos castanhos preso em rabo de cavalo olha rapidamente para um rapaz louro com um boné marrom. Ela está irradiante. Não consegue acreditar, mesmo tendo recebido a notícia da melhor amiga, que conseguiu o emprego. Está a tanto tempo sem, que tinha até perdido as esperanças. Uma vez chegou a ir com uma colega a um terreiro de umbanda pedir a uma das mães, cujo nome já nem se lembra mais, que arrumasse alguma coisa. Ao lembrar disso lhe dá calafrios, pois pode ser que tenha dado certo. O ônibus pára. Ela desce.

O cobrador do tubo observa uma garota de cabelos castanhos preso em rabo de cavalo descer sozinha do ônibus. Ele está ansioso. Ele já não agüenta mais. Hoje é aniversário do sobrinho e ele não vê a hora de sair dali. O pior é que teve que fazer o horário do colega, pois esse está extremamente doente, acredita-se que com tuberculose, e não pode vir. Ele não tem nem idéia do presente que vai comprar pro filho de sua irmã. Sua dúvida é sobre o que uma criança de seis anos pode querer ganhar. Ele nem lembra mais de quando tinha essa idade. Um ônibus se aproxima e ele precisa abrir a porta do tubo.

Um senhor de boina e sobretudo ao descer do ônibus olha rapidamente para o cobrador do tubo. Ele está preocupado. Sua esposa, com quem vivera mais de quarenta anos, está no hospital. Ela teve uma recente queda no banheiro e devido a artrite acabou quebrando a bacia. Ele se lembra da dor nos seus olhos. Era explícita. Ele se sentiu pela primeira vez perder a capacidade de protegê-la. Lembra-se do início em que ele era o herói, capaz de enfrentar Deus e o mundo para defendê-la e várias vezes o fizera. O sinal se fecha e ele atravessa a rua.

Uma mulher negra com um cachecol vermelho acompanha com os olhos um senhor de boina e sobretudo atravessar a rua frente a seu carro. Ela está contente. Finalmente ela vai poder viajar. Faz muito tempo que ela não faz isso. A empresa começou a ter problemas e ela sabe que se não tivesse se dedicado, tudo poderia ter ido por água abaixo. A mãe dela construiu a firma com tanto trabalho e ela não poderia de maneira nenhuma fali-la de modo tão banal. Foi um erro de análise que quase a levou ao buraco. Quando tudo se resolveu ela chegou a agradecer aos céus o diploma de mestrado em economia. O telefone celular toca e ela atende.

Um menino de calça abaixo do umbigo mostrando a cueca samba-canção branca vê uma mulher negra com um cachecol vermelho atender o celular enquanto dirige. Ele está nervoso. Ele torce pra que ela bata o carro pra aprender a não atender o telefone com ele em movimento. Seu mano pode se ferrar. É nisso que ele pensa. Ele sabe que os moleques da rua de baixo vão acabar por pegá-lo depois do que ele escreveu no muro do colégio. Afinal, ali é a área deles e uma invasão dessas é imperdoável. Ele não pretende fazer nada pra defender o irmão. Se ele fizer, pode acabar por se machucar junto e ele está mais interessado em ir inteiro pro jogo de sábado. Ele acena para uns colegas de turma que estão preparando mais um baseado.

Uma senhora com um guarda-chuva a tiracolo esbarra em um menino de calça abaixo do umbigo mostrando a cueca samba-canção branca. Ela está agitada. Não é sempre que se comemora bodas de ouro. Ela lembra dos filhos, ainda pequenos, indo pra escolinha pela primeira vez com as lancheiras em punho e hoje todos já crescidos com seus filhos indo pra escolinha pela primeira vez. Ela pensa que vai ter que aturar a nora, esposa do filho mais velho. Ela a acha extremamente chata e malcriada, mas sempre tem que tratá-la com carinho, pois senão seu filho pode ficar aborrecido. Para ela, um amor, é a outra nora, esposa do filho caçula. Ela dobra a esquina em direção à padaria.

O homem com uma britadeira na mão faz uma pequena pausa, enquanto uma senhora com um guarda-chuva a tiracolo cruza a sua frente. Ele está atento. Ele só pensa no trabalho. Em quanto não vai conseguir fazendo estas horas extras ali. Ele sabe que deve ganhar pelo menos mais um terço do salário e com isso dar uma boa adiantada na casinha que ele e sua esposa estão construindo ao lado da casa do melhor amigo dele. Aos poucos uma gostosa melodia vai sendo lembrada e sem que perceba logo já está cantarolando, porém o som ensurdecedor da britadeira impede que mais alguém ouça.

Uma moça de jaqueta jeans vê o homem com uma britadeira na mão e para evitar o barulho atravessa a rua. Ela está ansiosa. Ela não vê a hora de chegar no lugar combinado com o namorado. Eles estão juntos há mais de um ano e ele disse que ela teria uma surpresa no dia de hoje. Ela se lembra de quando a amiga o apresentou na festa da faculdade, ano passado, e que ela não dava nada por ele. Hoje, ela pensa muito diferente e já não consegue mais pensar nos planos para o futuro sem incluí-lo no pacote. Inclusive, pra ela, essa surpresa bem que poderia ser um anel de noivado.

Um homem de óculos e cavanhaque olha com o canto do olho para a moça de jaqueta jeans que passa a sua frente. Ele está cauteloso. Ele acaba de comprar um relógio. O último foi roubado na esquina da escola de línguas por dois caras. Um deles carregava uma faca e lhe disse que se abrisse o bico pegaria o revólver que tinha guardado na cintura e sem pestanejar atiraria. Ele ficou mudo de medo e acabou deixando que levassem juntamente com algum dinheiro que carregava na carteira. Dessa vez ele pretende tomar mais cuidado. Ele resolve cortar caminho pelo meio da praça.

A velha pobre segurando um pacote xinga forte um homem de óculos e cavanhaque que lhe atravessa a frente. Ela está saudosa. Lembra do tempo em que as coisas não estavam assim tão ruins. De quando vivia na cidade em que nascera no interior e com a ajuda das duas irmãs conseguia se virar muito bem, dando até pra fazer alguns extras no supermercado. Hoje em dia nem a deixam chegar perto, pois logo a escorraçam dali. Sua única diversão agora é alimentar os pombos da praça.

Um pombo branco com manchas cinzas sobrevoa a cabeça de uma velha pobre segurando um pacote. Ele vai em direção a uma das janelas de um velho prédio bege no centro da cidade.

Um rapaz careca de origem italiana vê quando o pombo branco com manchas cinzas pousa em sua janela.

— Oi Tuti! E então, o que me trouxeste hoje nestas tuas perninhas?

David Scortecci
Enviado por David Scortecci em 26/10/2005
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