O Quartel
 
Toda a bateria AD4 do 2º do 4º RO 105, sediada na cidade de Pouso Alegre, sul de Minas Gerais, no dia 10 de fevereiro de 1966, às dezesseis horas, estava em forma. O comando foi dado pelo nosso primeiro sargento Latorre:
– Bateria, descansar!
Saímos da posição de sentido, ficamos com as pernas semiabertas e com as mãos para trás, posição mais confortável, mas ainda em forma. O boletim seria lido pelo nosso terceiro sargento Malheiros. Nossa expectativa era grande: aquele boletim continha o nome dos soldados que terminariam seu tempo de serviço militar e sairiam nas primeira, segunda e terceira baixas. Obviamente que todos desejavam sair na primeira baixa, coisa impossível de acontecer. Os novos recrutas, que estavam prestes a incorporar, necessitavam de treinamento intensivo para assumirem as novas responsabilidades, como, por exemplo, guarda do quartel. Enquanto tal preparo não acontecia, o quartel ficaria guarnecido por nós, considerados como praças velhos. Seríamos cuidadosamente selecionados, de acordo com o comportamento de cada um. Bom comportamento primeira baixa, comportamento médio segunda baixa e mau comportamento última baixa, e, consequentemente, serviço dobrado.
Eu era bem-comportado e amigo de todos, mas confesso, os amigos do peito eram mal comportados, “boca de cadeia”, assim denominados. Pergunto-me: “Por que deixar o quartel nas mãos de mal comportados?”. Respondo: “Observe bem, nos filmes e romances sobre a guerra, os heróis são mal comportados!”. Eu já assisti filmes e li romances em que o comando libera os soldados da cadeia para participarem de missões suicidas e eles as cumprem de maneira irrepreensível. Meus amigos eram assim: destemidos, valentes, prontos e preparadíssimos para o combate, verdadeiros soldados. Como ninguém é perfeito, quase todos tinham algumas fraquezas: mulheres, bebidas e encrencas eram as mais comuns.
Vivíamos em um contexto drástico. O mundo acompanhava perplexo a recente, aprimorada e sangrenta guerra de guerrilha no Vietnã. Nos países vizinhos, Argentina e Uruguai, a luta da esquerda tentando derrubar as ditaduras estava acirrada. No Brasil, em 1964 – portanto, há dois anos –, os militares tomaram o poder e instalaram uma ditadura. A esquerda começava a luta armada contra ela, com alguns ataques a quartéis. Nós, soldados, pagávamos o pato, embora fôssemos da artilharia: a cada dois meses tínhamos que acampar e participar de instruções pesadas para treinamento de luta antiguerrilha. Toda semana, pelo menos um dia de prontidão: ninguém saía, ninguém entrava e todos dormiam com os equipamentos de combate, dentre eles, o coturno chulezento.
A vida era dura e a comida ruim. No inverno, quando de serviço ao relento, passávamos frio, porque não tínhamos equipamento que nos agasalhasse de fato. O que nos dava alento era os verdadeiros amigos, pois nos apegávamos como irmãos de farda e sangue. Quando alguém conseguia um doce ou uma comida especial, a notícia corria entre o bando:
– Fulano avisou que após o toque de silêncio estará no vestiário, junto ao seu armário. Os interessados que lá compareçam para degustar...
Seguíamos de dois em dois para não chamar atenção. Que maravilha, quanta comida boa, a gente até dormia melhor. Eu também repassava, com prazer, meus quitutes, não podia ser diferente.
O sargento Malheiros já estava lendo o boletim diário e chamando pelos relacionados para a primeira baixa. Chamava pelo número e nome de guerra. Meu número era um dos últimos, então continuava aguardando, pacientemente, já que sabia que no momento certo seria chamado. Lembrei, não sei por que, de que, em um dos acampamentos de treinamento, foram escolhidos, com muito critério, dois oficiais, quatro sargentos e dezenove soldados para atuarem, durante quatro dias consecutivos, como inimigos de toda tropa, ou seja, como guerrilheiros. Pelo menos os soldados escolhidos teriam que ser os melhores. Durante a escolha, só encontraram dezoito soldados com o perfil exato para o treinamento. Os escolhidos eram todos meus amigos e todos mal comportados... O meu comandante, durante a escolha, percebeu que faltava um. Ficou pensativo a quem chamar, quando, respeitosamente, foi interrompido por um coro de dezoito amigos:
– Tenente Delano, mande o Campos! Ele é um dos nossos!
O tenente, quase que instantaneamente, bradou:
– Soldado Campos, complete o grupo de guerrilheiros!
Quando passei por ele em direção ao grupo, observou em voz baixa e tom de brincadeira: “Considero você um dos bons, mas não sabia que era malfeitor!...”. Respondi discretamente: “Tenente, minha ficha é limpa, sou do bem!”.
Naquele treinamento, tivemos a oportunidade de mostrar o verdadeiro valor de um soldado arrojado. Os observadores militares que ali estavam acompanhando o desenrolar dos combates ficaram impressionados com o nosso preparo. Segundo eles, causamos um quarto de baixa na tropa – nada mais nada menos que cem soldados foram aniquilados por nós. Tivemos somente cinco baixas em nosso grupo de 25 guerrilheiros. Foram quatro dias e quatro noites fustigando nossos inimigos. Conseguimos o apoio da população rural que ali vivia. Eles nos deram abrigo, comida e em vários momentos nos esconderam para que não fôssemos presos. Depois daquele treinamento, até eu mesmo fiquei cismado comigo.... Pensava: “E se tivesse sido uma guerra para valer, que estrago teríamos causado ao inimigo?”. Dali em diante fiquei mais confiante, me sentia preparado para um eventual dia “D”.
O sargento Malheiros termina de chamar pelos soldados que sairiam na primeira baixa e não chamou por mim. Chamou pelos da segunda baixa e também não chamou por mim. Fiquei para a última baixa. Que injustiça fizeram comigo! Tive vontade de gritar, de esbravejar, para exprimir minha revolta, mas como militar tive que aguentar tudo, como se nada tivesse acontecido. Logo que o sargento Latorre ordenou “Bateria fora de forma, marche!”, pude ver a alegria de todos que estavam na primeira baixa e a tristeza dos que ficaram para segunda e, principalmente, para última baixa, entre os quais estava eu. Naquela noite, eu e meus amigos mal comportados e, agora, de última baixa nos reunimos e decidimos não mais dormir no alojamento. Mudamos para o nosso Grêmio Recreativo, que ficava na parte de baixo do prédio e que naquele momento estava inativo. Levamos camas, colchões e armários. Um dos amigos conseguiu uma placa de perigo, dessas que têm um crânio de caveira, com dois ossos cruzados, geralmente usada para alertar sobre o risco de morte, e escreveu já prevendo a chegada dos novos recrutas: CUIDADO, PRAÇA VELHO e a colocou na entrada. No dia seguinte, pela manhã, fui até a sala de meu capitão, o recém-promovido comandante Delano, e indaguei sobre o fato de ter bom comportamento e, no entanto, ter ficado para última baixa. Ele levantou-se da cadeira, atrás de sua mesa, veio até mim, colocou sua mão direita em meu ombro e falou:
– Campos, eu preciso de você. Eu entendo sua indignação, mas compreenda minha responsabilidade. Na atual conjuntura, eu preciso de soldados em quem eu posso confiar e você é um deles!
Depois de uma longa conversa, sai dali completamente sem ação e conformado com a nova missão.
Passados mais uns dias, tristeza geral, os amigos da primeira baixa foram embora. Logo chegaram os novos recrutas e os amigos da segunda baixa, seguindo a rotina, partiram. Ficaram os mal comportados e alguns bem-comportados, entre os quais eu. Teríamos que aguardar mais uns dois meses para também partirmos. O ritmo de serviço era pesado, mas o cumpríamos com galhardia. O tempo passou, logo chegou a nossa vez. Combinamos que sairíamos todos juntos: iríamos até o centro da cidade, lá beberíamos cerveja e nos despediríamos. Assim o fizemos. No boteco, onde bebíamos e conversávamos, nos conscientizamos de que o quartel, apesar de todas as adversidades, tinha sido uma boa escola. Apreendemos, além da arte militar, coisas importantes ligadas ao relacionamento interpessoal. Estávamos convictos de que nossos sonhos, recém-nascidos, seriam realizados. Depois de longas conversas, entre muitos abraços e choro, nos despedimos. Para mim, despedir-me de amigos sempre foi muito doloroso e eu tive que fazê-lo algumas vezes ao longo de minha vida. Nos dias atuais, ainda guardo na lembrança os nomes, os números e as feições joviais e alegres de todos que partiram para sempre, naquele derradeiro dia.
Já se passaram cinquenta e cinco anos e eu ainda sinto saudade da velha e boa caserna. Fábrica de guerreiros, nobre morada dos valentes soldados que comigo lá viveram. Sinto saudade das nossas inseparáveis namoradas negras, bem cuidadas, limpas, engraxadas e municiadas até a boca. Com orgulho as carregávamos a tiracolo, prontas para o combate. Sinto saudade do toque de silêncio, que muitas vezes nos fez chorar, executado diariamente, às vinte e duas horas, com maestria, pelos nossos corneteiros. Enfim, sinto saudade de tudo e de todos, saudade que plantei e cultivei com carinho, entretanto, saudade igual a essa jamais plantarei, jamais cultivarei, pois esteve e estará para sempre, carregada de lágrimas.
Ronaldo Celso Campos
Enviado por Ronaldo Celso Campos em 09/07/2018
Reeditado em 16/10/2020
Código do texto: T6385668
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