Oásis

As palavras do patrão entalavam em sua garganta. O peso de cada uma delas fazia arder o estômago, subia para o rosto pálido, aumentava as olheiras. Quando o chefe terminou, baixou a cabeça e saiu.

Trabalhou o resto do dia curvado. Evitava o olhar debochado ou complacente dos colegas. Quando o relógio apitou, marcando o fim do expediente, seguiu depressa para o ponto de ônibus.

O cartão da passagem enroscou na borboleta. “Inferno “, praguejou. Àquela hora e o coletivo já estava lotado.Até o fim da viagem, esperou que surgisse um assento. Os pés latejavam dentro dos sapatos apertados.

Desceu no ponto da Getúlio Vargas, correu para alcançar o banco aberto. A esposa não parava de mandar mensagens, lembrando as contas que venciam. Na boca do caixa precisou inventar uma desculpa para a bancária, rubro de vergonha pelo dinheiro insuficiente. Que diria para a mulher quando chegasse em casa? Tinha prometido para ela que naquele mês, as finanças se organizariam. Seguiu para a Independência; buscar o resultado dos exames da filha, comprar caderno e borracha pro filho.

No laboratório, teve que esperar. Sentado numa cadeira de plástico, viu dois, três, vários pacientes passarem na sua frente. Ao reclamar, ouviu da atendente uma desculpa esfarrapada, um jeito delicado de dizer, "eles pagam, você não".

Quando enfim, foi atendido, era tarde. A papelaria fechava as portas. Lápis, borracha, o que mais a mulher tinha pedido mesmo?

Dessa vez,conseguiu um banco no circular, mas ofereceu para uma gestante. Encostou numa barra de ferro de onde podia ver a vida além do ônibus que corria por ruas mal pavimentadas e de sinalização precária, jogando os passageiros para o alto, a cada lombada. Ficou na dúvida se a vida era mesmo sem graça ou ele quem tinha desistido de achar graça nas coisas. Um dia cheio. As ofensas do patrão, a dor de estômago que não melhorava. A moça da papelaria Ideal disse que era a última vez que vendia fiado. No laboratório, precisava todo mundo saber que sua filha era paciente do SUS?

Desembarcou sem pressa. O material do Felipe numa mão, os exames da Clarice na outra. As contas pagas e pendentes, enfiadas no bolso da camisa. Tivesse um buraco bem fundo ele se enfiava dentro, pensou abrindo o portão.

Antes de puxar a maçaneta encostou a cabeça na porta e ficou escutando. A mulher ralhava com as crianças que faziam algazarra na sala pequena, televisor ligado no volume mais alto.

Se imaginou chutando a porta, gritando para a mulher que não tinha pagado todas as contas e isso não era problema dela, desligando o televisor e mandando todo mundo calar a boca.

Entrou quietinho, rezando para passar despercebido pelos filhos e a mulher. Olhou para a garrafa de Velho Barreiro na estante ultrapassada. Antes de chegar à garrafa, Felipe agarrou suas pernas, Clarice pulou em suas costas, beijando seu rosto suado.

- Mãe, o pai chegou!

A mulher veio depressa, ia abrir a boca para reclamar da demora, perguntar sobre as tarefas. Olhou para ele e saiu calada. Voltou com um copo de água gelada.

Abraçado aos filhos , teve certeza de que no dia seguinte ,estaria revigorado.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 16/07/2018
Código do texto: T6391722
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