A INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO

O Deputado Bráulio, propôs um projeto de lei que visava conceder isenção de imposto de renda, para todos os professores que atuavam na rede pública e privada em todos os níveis de ensino. A proposta, de início, já causou certa desconfiança, pois os professores sabendo da existência da mesma, acharam que se tratava apenas de proposta eleitoreira. O certo é que a proposta se tornou lei, seguindo todo o rito legal, e foi aprovada contrariando todas as expectativas e histórico de derrotas do magistério no Brasil.

Foi a lei do ano, nenhum professor imaginou que poderia ter tal benefício, e sendo o mesmo proposto por um dos deputados federais que mais ferrou o ensino público brasileiro. Alguns diziam que talvez fosse uma forma de pagar os inúmeros pecados cometidos contra os profissionais da educação.

A expectativa para o próximo ano, era de fazer uma economia com aquele dinheiro que deixava todo mês o salário enfraquecido, e fazia os professores serem, além de tudo, contadores de tostões. Dona Ires, professora de matemática, nunca havia entendido, porque seu mísero salário, conseguido as duras penas, por meio da ministração de 180 aulas mensais, era considerada renda para fins de desconto do fisco. Parte considerável do salário tomava outro rumo, diverso daquele que poderia beneficiar a si e a sua família. Pois sempre via escândalos de corrupção com o dinheiro público, nas empresas públicas, nas de economia mista, nos processos de licitação, na execução de obras públicas, e em diversas outras formas de falcatruas. Assim tinha certeza que aquele dinheiro descontado todo mês, resultado de longos dias de trabalho, e longas horas despendidas em planejamentos extras em casa, não tinha retorno para a mesma, ou para a sociedade brasileira. Claro que era descontado o valor percentual mínimo dela, pois estava no limite dos baixos valores que ainda eram abocanhados pelo fisco.

O certo é que o projeto agora era lei, e beneficiava uma das categorias de trabalhadores mais penalizadas pelo descaso do poder público, uma das categorias que menos tinha acesso a diretos garantidos (tinha que entrar com ação na justiça para ter acesso aos direitos garantidos em lei, como progressão e data base).

Dona Ires, viu o ano da aprovação da lei passar, e no ano seguinte, realmente seu salário tinha apenas os descontos do fundo de previdência de sua categoria de trabalhadores, do desconto sindical de associado, do empréstimo em folha para fazer uma pequena reforma em casa e do plano de saúde particular que tinha. Agora dava de comprar mais verduras, frutas e ter uma alimentação melhor. Tinha trabalhado por quase quarenta anos na educação, contudo só conseguia provar vinte e cinco anos. Por isso demorou tanto tempo para solicitar sua aposentadoria. Já tinha sessenta e três anos de uma longa vida de trabalho, e finalmente conseguia se aposentar.

Aposentou, e a primeira surpresa que teve quando recebeu seu primeiro benefício como aposentada, foi que seu dinheiro havia tido um belo desconto não planejado, um desconto indesejado. Foi no banco e o atendente lhe informou que era o desconto do imposto de renda.

- Mas como, se os professores foram isentados por lei de pagar imposto de renda?

O funcionário do banco sem muitos conhecimentos, não soube explicar as razões que a faziam após um ano, pagar imposto de renda novamente. E lhe sugere procurar um órgão competente que não sabia qual era.

Ela sai cabisbaixa dali, pois sabia que aquele valor iria fazer uma terrível falta, principalmente nos remédios para reumatismo, pressão arterial, labirintite, reposição hormonal, nervosismo, entre muitos outros.

- Não pode ser, disse a si mesma ao sair do banco.

Procurou um colega na escola, que entendia um pouco de leis e perguntou:

- Messias me explica o porquê do desconto do imposto de renda em minha aposentadoria, se o imposto de renda foi isentado para professores?

Messias também não tinha ideia do que tinha ocorrido, mas fez uma sugestão:

- Por que você não faz uma pesquisa na internet, e ver se consegue descobrir o que ocorreu? Melhor, vamos fazer a pesquisa juntos, porque também fiquei curioso em saber.

Então os dois se puseram na frente do computador na sala dos professores, e começaram a pesquisar. Abriram o primeiro site e lá tinha um artigo, do mesmo mês de aprovação da lei de isenção de imposto de renda para professores, que dizia ser inconstitucional isentar uma categoria de trabalhadores, pois tal norma feria o princípio da igualdade.

Continuaram sua pesquisa e encontraram um outro artigo mais recente, que falava em inconstitucionalidade daquela norma, mas por outros motivos. Dizia que a norma tornava-se inconstitucional, por criar uma desigualdade em uma mesma categoria, ou seja, os professores em atividade, eram isentos do pagamento de IR, mas os professores aposentados não tinham direito ao mesmo benefício.

- Isso é um absurdo, retrucou Dona Ires.

- Não sabia disso, disse Messias com ar de indagação.

- Quando a coisa começa a melhorar pro lado do pobre, logo vem a rasteira para mostrar ao infeliz que seu destino é sofrer.

- E agora o que você vai fazer?

- E tem como se fazer alguma coisa? A lei só iria me beneficiar se eu não estivesse aposentada. Não tem como.

- Mas veja nesse site, o jurista disse que a lei é inconstitucional por fazer diferenciação em uma mesma categoria de trabalhadores. Então, tem sim como fazer alguma coisa.

- Acho que não, pois ele fez essa afirmação faz alguns meses e nada mudou.

- Claro, tem que recorrer a pessoa ou instituição certa, e da forma certa para resolver, e talvez ele só tenha mostrado que a lei é inconstitucional. Vamos pesquisar como pode ser resolvido uma situação assim, como essa, pois também me interessa.

Assim os dois continuaram sua pesquisa, mas agora com foco em descobrir o que fazer. No próprio artigo em que se afirmava que a norma era inconstitucional devido fazer diferenciação entre ativos e inativos da educação, também deixava claro sobre os caminhos que deveriam ser seguidos para resolver o problema, dentro do processo legal.

Perceberam que havia sim, como mudar o rumo das coisas e chegar a um resultado favorável para Dona Ires e diversos outros colegas, deveriam procurar seu sindicado e pedir que o mesmo fizesse à Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), e só assim o grave erro poderia ser corrigido e Dona Ires sairia daquele aperto, além é claro, de ajudar vários outros colegas da educação que também passavam pelo mesmo problema. Então lhe ocorreu uns pensamentos:

- Como pode, só ter sido eu a sentir essa facada? E os outros professores que se aposentaram após a aprovação dessa lei? Aceitaram sem reclamar? Como pode?

- Em muitos casos, pelo fato de não termos acesso a nossos direitos garantidos, aceitamos a injustiça calados. Sempre foi assim. Eu mesmo tenho duas progressões atrasadas, e só terei direito a elas, que são direitos adquiridos e garantidos, se entrar com uma ação na justiça. Infelizmente é assim no Brasil, para quem não faz parte das funções e cargos nobres em que não é necessário brigar para ter acesso a seus direitos.

Então os dois se olharam, com o olhar de certeza, e souberam que seria uma longa luta, não apenas por aquela situação em particular, mas por todas as outras que sempre estavam surgindo e tirando o sono dos dois.

Dona Ires, foi então ao sindicato, e informou o presidente do mesmo sobre o problema, que de pronto ligou para um amigo advogado, que lhe instruiu a respeito do que deveria ser feito. Então, logo em seguida, ligou para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, que já se organizava para entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão Parcial, onde estava sendo alegado a insuficiência da lei em garantir um direito.

A ação é proposta, e quando a mesma chega ao Supremo Tribunal Federal, encontra por lá, dezenas de outras ações que tratavam da mesma lei. Contudo, algumas pediam a inconstitucionalidade total da lei, por privilegiar apenas uma categoria de trabalhadores, que mesmo sendo sofrida, não era mais do que a dos enfermeiros, dos médicos, dos assessores de deputados, dos advogados, etc., etc., etc. Algumas pediam a inconstitucionalidade por omissão, por acharem que a referida lei deveria contemplar também os policiais, os bombeiros, e os agentes de segurança no geral. O certo é que haviam dezenas de motivos, em dezenas de ações. Algumas com fundamento e a maioria com fundamento nenhum.

Os meses passaram, Dona Ires deixou de comprar alguns medicamentos, para poder comprar comida, pois ainda ajudava uma filha viúva, não assistida pelo Estado, com três filhos pequenos e a mãe com oitenta e três anos, cheia de problemas de saúde, que morava com ela. Não era fácil.

- Nunca foi fácil, dizia ela, ainda com um pouco de esperança.

Um certo dia adoeceu, e como não pagava mais pelo plano de saúde, pois havia ficado muito caro e reduziu seus rendimentos, teve que ir para o atendimento público. Descobriu que estava com câncer e que se cuidasse logo poderia ficar bem de saúde novamente. Deveria, além do tratamento quimioterápico, fazer uma cirurgia, e a mesma foi marcada para dali um ano e meio. Coisa de desesperar mesmo. Mas teve acesso a alguns medicamentos paliativos e de amenizar as dores. Seguiu com a quimioterapia.

E nada da ADO ser analisada. E o tempo passava. E nada do STF chegar a uma conclusão a respeito daquela bendita lei.

- A Justiça é lenta como uma tartaruga em um banco de areia, dizia ela.

Seus problemas de saúde agravaram-se, e nada de uma decisão acerca da lei. Complicou ainda mais. Teve que ser internada, ficou inconsciente, não poderia mais ser operada. Durou apenas vinte dias de sua internação para seu óbito. Morreu dona ires, assim mesmo com letra minúscula, do tamanho da importância que ela tinha na sociedade brasileira, para o Estado.

Morria, mas também decretava a morte de outros cidadãos brasileiros, não naquele mesmo momento de sua morte, mas posteriormente. Era decretada a de sua mãe, muito dependente da querida filha professora, da filha viúva que mesmo trabalhando não conseguia manter-se e a seus três filhos. Talvez possa ser só exagero, mas quando morre uma pessoa muito boa e prestativa, ela sempre leva alguém que necessita muito dela.