A Artista

Retocava os últimos detalhes de seu quadro - com tons de vermelho e negro predominantes na tela - quando ele adentrou, a passos silenciosos, seu ateliê. A luz fraca do sol empregava àquela tarde invernal uma certa melancolia forçada. Os transeuntes caminhavam sem rumo, lentamente, pelos pavimentos. Os carros não faziam barulho. Tudo estava calmo quando ele pigarreou.

- Por que o grotesco na arte? - inquiriu ele, sem dizer-lha boas tardes, como se estivesse a continuar uma conversa.

- A raiva - redarguiu ela, sem se virar. - A arte faz amenizá-la. O grotesco nada mais é que um produto do sublime.

- Pois, diz-me que a arte é sublime?

Ela virou-se, bruscamente.

- A arte tem em si o que qualquer outra forma de expressão humana não tem - disse. - O artista só é livre enquanto a produz e, para tal, há que ser verdadeiro. Enquanto há sinceridade do artista para com a arte que faz, esta retribui e expressa-se livremente.

- E que raiva te acomete, moça? - perguntou o curioso homem.

Ela virou-se novamente à tela. Molhou a ponta do pincel em um vasilhame cheio d’água e, em seguida, mergulhou-o em outro cheio de tinta preta.

- Falsas amizades - falou ela. - Subproduto da arte. Pintar, isto é, fazer arte, é sofrer. É ver-se despido como se estivesse defronte a um espelho. E o horror interno de um artista - e não apenas isso, mas suas maravilhas - atraem pessoas. Muitas destas que, aliás, só veem nos horrores e maravilhas alheios a grande oportunidade de ganharem dinheiro.

- Foste explorada? - continuou ele, mesmo a perceber certo incômodo por parte da mulher.

- E como! Ludibriada, enganada, fizeram-me de uma completa idiota. E eis aqui - disse, a apontar o quadro - o resultado dessa minha fúria.

- O que te fizeram?

- Pulhas, desgraçados - exclamou ela, iracunda. - Venderam quadros meus aos quais tinha posto minha alma para fora. Decerto que concordei com a venda, pois arte não serve para ser engavetada ou trancafiada a sete chaves. Esta sempre é feita para ser exposta. Contudo, aproveitaram-se de mim e levaram o meu dinheiro. Deixaram-me às mínguas. Não lamento o lucro perdido e sim minha arte. Você só é bom para esses aproveitadores enquanto a produz.

- Sei-o bem - falou o homem, quase murmurante. - Atraiu-me aquele retrato de mulher na vidraça em frente - comentou. - Quem é aquela?

- Sou minha própria musa - replicou a mulher, finalmente a terminar a obra.

Ambos sorriram. Aquela foi a primeira vez em que finalmente se encontraram.

- Qual o teu nome? - perguntou o homem à artista, finalizando a compra do quadro.

- Julia - redarguiu ela, a entregar-lhe um papel. - Espero vê-lo em breve.

O homem agradeceu e dirigiu-se à saída.

- E você? Como se chama? - perguntou Julia.

- Glauco - falou ele, sem se virar, a sair, dobrar à esquerda e perder-se pelas pavimentações.

O sol brilhava cada vez menos anunciando o crepúsculo.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 23/07/2018
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