A Igualdade Ilusória

Havia um grande edifício, com diversas divisões, onde existia uma complexa e desigual organização entre os moradores do mesmo. Nos primeiros andares, ocupando 10% do espaço, moravam 80% dos inquilinos, que eram formados pelos mais variados tipos de pessoas, mas que no geral, eram trabalhadores, ganhavam pouco e o que ganhavam, era direcionado para o simples manter-se vivo. Nos andares do meio do edifício, moravam 15% dos inquilinos, que ocupavam 30% do espaço, e essas pessoas compunham um grupo homogêneo, onde achavam que faziam parte dos privilegiados do topo, mas que ocupavam funções que eram distribuídas por aqueles em troca do apoio e bajulação desses. Já nos andares superiores que eram muitos, diversos, melhores e mais amplos, com todas as regalias e luxos que se poderia imaginar em uma esplendorosa morada, viviam 5% dos privilegiados residentes daquele edifício, que ocupavam 60% do espaço do mesmo.

Existiam setores comuns, onde todos os moradores poderiam ocupar, e setores que apenas os moradores ilustres poderiam gozar de seu uso, gozo e disposição. Nos setores comuns haviam algumas coisas que deveriam ser divididas entre todos, mas nunca dava para todo mundo.

Os serviços de energia elétrica, água, gás, entre outros, eram pagos em cotas iguais entre todos os moradores, não importando o quanto cada um consumisse. Além do pagamento desses serviços, ainda se pagava o condomínio para outros gastos coletivos, mas que na verdade os moradores dos primeiros andares nunca se beneficiavam como os moradores dos andares superiores.

Havia uma taxa que era direcionada para o pagamento de educação, saúde, segurança e lazer, entre outros, mas no entanto, havia uma severa divisão referente a qualidade entre os serviços oferecidos aos moradores dos três níveis de moradias do edifício. Para os moradores dos andares de baixo, os serviços oferecidos eram precários e de péssima qualidade. Quando era necessário ter acesso aos serviços de saúde, esse serviço deveria ser agendado com muita antecedência, que quase sempre resultava em um atendimento de péssima qualidade ou nenhum atendimento, muitas vezes por falta de profissionais ou mesmo material básico para efetivar o atendimento.

A educação era focada para fazer o aluno desistir ainda no ensino básico, pois a mesma necessitava de estrutura física nos espaços destinados à ministração do aprendizado, e os profissionais que atuavam nesse serviço, eram moradores dos andares de baixo do edifício e eram muito mal remunerados, sem acesso aos direitos mais básicos de um trabalhador comum.

O lazer era resumido para os moradores dos andares de baixo, a uma área nos fundos do terreno onde se encontrava o edifício, com apenas um espaço de cimento desgastado onde se poderia bater uma pelada, e outra área onde dava de fazer um churrasco debaixo de umas mangueiras e abacateiros.

No que se referia a segurança do edifício, assim como os outros serviços pagos em valores iguais sem distinção de nível de renda ou benefícios de fato conseguidos, só tinha acesso a mesma os moradores dos andares superiores, e ainda que os moradores dos andares do meio achassem que também estavam seguros, era construída em suas mentes uma falsa ideia de segurança que faziam os pobres coitados acharem que estavam protegidos de todo o mal que rondava aquele edifício.

Ocorriam diversos roubos e assassinatos, mas apenas tendo como vítimas os moradores dos andares de baixo e do meio. Muitas pessoas morriam sem acesso ao sistema de saúde pago coletivamente de forma igualitária, mas apenas vítimas dos andares inferiores e vez ou outra dos andares do meio, nunca dos andares superiores. Muitos jovens desistiam de estudar, mas apenas dos andares inferiores e vez ou outra dos andares do meio.

Os moradores dos andares inferiores, descobriram certo dia, que os filhos dos moradores dos andares superiores, estudavam em um edifício muito mais luxuoso, do que aquele, e que esse ensino era pago com a cota coletiva de todos os moradores. Descobriram também que o acesso a saúde era realizado em amplos espaços de saúde especializada em outros edifícios, tudo pago pela cota coletiva de todos os moradores daquele edifício onde moravam. Descobriram que o edifício nas áreas de acesso restrito aos moradores dos andares superiores, havia amplos espaços de lazer, de atendimento à saúde, de complementação do aprendizado, e muitas outras coisas maravilhosamente luxuosas e restritas aos moradores dos andares superiores e seus chegados bajuladores dos andares do meio.

Todos os recursos advindos das contribuições de todos, serviam para proporcionar a boa vida dos moradores dos andares superiores. Essa descoberta, começava a incomodar os moradores dos andares inferiores.

Nas eleições para escolha do síndico do prédio, os moradores dos andares inferiores eram proibidos de lançarem um candidato que os representassem, e apenas os dos andares do meio e dos andares superiores lançavam-se candidatos. Quando era eleito um dos andares do meio, esse achava que pertencia ao grupo de privilegiados do topo, e fazia com que a mesma ordem de privilégios fosse mantida, embora sendo ele mesmo apenas um instrumento nas mãos dos moradores do topo. Mas aquela estrutura, dia após dia começava a incomodar os sem privilégios.

Seu João Inácio, trabalhador esforçado dos andares de baixo, via que a coisa estava errada e comentou com seu amigo Valdemar:

- Rapaz, aqui a coisa é desajustada, quem mais precisa é quem menos tem acesso às coisas.

- É amigo... Pagamos tudo e não temos acesso a quase nada de benefício. Dá até vontade de mudar desse prédio.

- Mas só se for em outra região, pois nessa, todos os prédios têm essa mesma forma de organização.

- É verdade, mas tem sim lugares melhores para viver e usufruir daquilo que produzimos com o esforço do trabalho.

E assim ficaram a refletir sobre uma melhor situação conseguida em outro edifício, ainda que fosse longe daquele onde moravam.

Valdemar e João Inácio eram pais de família, batalhadores e focados em viverem bem junto a suas famílias, assim como ter acesso ao que era de direito por serem obrigados a se desfazerem de boa parte do dinheiro adquirido com o trabalho, para bancarem, assim como muitos outros, os luxos e múltiplos benefícios para os moradores dos andares superiores.

Certo dia um sobrinho de João Inácio, o Chaguinha, adoeceu e teve que ser consultado por um médico. Entrou na fila de atendimento de saúde do edifício, e a moça que o atendeu, disse que não era emergência e teria que aguardar três meses para ter acesso a uma simples consulta médica. Ao fim desse período, retornou e muito debilitado, foi atendido precariamente. O médico lhe receitou alguns medicamentos, e lhe recomendou fazer alguns exames. Na farmácia coletiva do edifício, os moradores dos andares inferiores, a muitos anos não tinham mais acesso a nenhum tipo de medicamento, pois os medicamentos eram destinados aos moradores dos andares superiores e do meio em alguns casos. Exames médicos, marcava-se com prazos superiores a um ano. Foi exatamente isso que aconteceu com Chaguinha, que não teve acesso aos medicamentos e não poderia comprar, pois os mesmos eram muito caros. Seus exames foram marcados para dezenove meses a partir daquele dia. Sua mãe, se desesperou. Não poderia fazer nada, a não ser esperar e chorar as vezes em longas noites de sofrimento.

Pouco depois, o filho de Luís Inácio (o Inácio privilegiado do prédio), adoeceu. Com presteza, foi visitado em seu apartamento por dois médicos, pagos com o dinheiro coletivo, que receitaram alguns medicamentos e mandaram um encarregado dos andares do meio buscar todos, na farmácia coletiva. Trouxeram os medicamentos receitados e outros mais, por indicação do responsável pela administração da farmácia, como vitaminas e fortificantes. Os médicos propuseram fazer diversos exames, que de pronto ficaram responsáveis em levar o garoto para um edifício com melhores condições de realizar tais exames (com tudo pago pelas contribuições coletivas). E tudo foi feito como indicado.

Alguns dias se passaram e o quadro de saúde ou a falta dela, de Chaguinha, foi agravado. Novamente, ao ser atendido, disseram que deveria esperar alguns meses para ser consultado por um médico novamente. Dessa vez, olhou para sua mãe e disse:

- Quero morrer em minha cama. Só assim terei um pouco de dignidade, como ser humano.

Copiosamente sua mãe chorou, pois não poderia fazer absolutamente nada, e não tinha a quem recorrer, pois tudo estava direcionado para excluir os moradores dos andares inferiores e privilegiar os moradores dos andares superiores.

Valdemar, olhando certo dia, pela janela de seu apartamento, viu os filhos dos privilegiados tomando banho em uma grande piscina privativa da área do prédio, mantida com dinheiro coletivo, mas que só poderia ser usada pelos moradores dos andares superiores, como Luís Inácio. Se encheu de raiva e procurou seu amigo, João Inácio (o sem privilégio e que não tinha ligações de parentesco com Luís Inácio). Disse ao mesmo:

- Irei embora daqui amigo, pois não tem a quem recorrer para alcançarmos pelo menos a igualdade no tratamento como ser humano que somos todos, de todos os apartamentos desse edifício. Que cumprimos com nossas obrigações comunitárias iguais, e somos tratados de forma desigual. Não posso tolerar isso.

- É amigo, eu entendo, mas para onde você vai, se é aqui que se encontra sua casa?

- O mundo é imenso e imensa são as possibilidades proporcionadas por ele. Assim, não posso suportar uma situação dessas, pelo medo da mudança, do diferente, do desconhecido. Não posso continuar sendo apenas um peão no tabuleiro, onde minha função é ser sacrificado para defender os privilégios do rei.

- E o que fará com seu apartamento?

- Deixarei ai, e se me estabelecer em outro lugar, pensarei no que fazer.

Estavam conversando, quando chega um filho de João Inácio e diz que Chaguinha, após sentir uma dor avassaladora, havia falecido. Os dois correm para a casa da irmã de João Inácio, mãe de Chaguinha. Muito choro se mistura com o ar de revolta, pelo descaso, pelo qual passou Chaguinha.

- É inaceitável isso, disse Valdemar.

E afirmou:

- Por isso irei embora desse prédio.

Todos se olharam, com olhar duvidoso, pois ninguém havia tido essa ousadia até ali.

Nesse momento, chega um morador dos andares do meio e diz:

- Graças a Deus o filho do senhor Luís Inácio já melhorou e está vindo para casa.

- Graças a Deus e ao dinheiro da coletividade seu tolo puxa-saco, disse Valdemar, com a cara fechada.

O puxa-saco, também coitado, viu que não era bem vindo ali e foi embora.

- Viu só amigo? As coisas não vão mudar, devido principalmente a esses puxa-sacos cegos, que por migalhas defendem até a morte os privilegiados moradores dos andares superiores.

- É verdade amigo, infelizmente.

Dias depois Valdemar e toda a sua família foi embora. Em pouco tempo, se estabeleceu em outro prédio, muito distante do que morava. Conseguiu um bom trabalho e começou a viver de fato. No prédio onde foi morar, não havia grandes diferenças entre seus moradores, no que dizia respeito a benefícios coletivos. Pagava-se pelos serviços na proporção de condições de cada um, e todos tinham acesso aos bens e serviços coletivos. Essa notícia chegou até seu antigo endereço, e logo se espalhou por todos os apartamentos. A maioria dos moradores dos andares inferiores e até alguns dos andares do meio, se interessaram em fazer o mesmo que Valdemar fez, ou seja, ir embora dali com sua família.

João Inácio foi convidado pelo amigo a se mudar para um apartamento nos andares superiores, do prédio que agora morava, e que estava desocupado havia muito tempo, mas estava bem preservado, mobiliado e limpo. E o amigo se mudou para lá. Conseguiu um bom trabalho, e a primeira surpresa, foi olhar o mundo de cima, sentindo-se bem, passando bem, sendo igual aos demais moradores, tendo os mesmos privilégios e entendendo agora que o termo “privilégio” não encontrava espaço ali, mas em seu lugar havia o termo “coletividade plenamente igualitária”. Sentiu-se gente, pela primeira vez na vida e soube o que era viver bem.

Os dois amigos souberam que pouco a pouco, os moradores dos andares inferiores, do edifício em que moraram e foram explorados por muitos anos, estavam abandonando aquele lugar, e para seus apartamentos estavam indo pessoas de má índole, ou os apartamentos estavam sendo ocupados apenas por ratos e baratas.

Os andares de baixo com o abandono, e a ocupação indesejada, foram ficando sujos, úmidos e cheios de doenças. Esses problemas foram afetando todos os moradores, pois crescia rapidamente e a inércia dos moradores dos apartamentos superiores em resolver o problema, pois achavam que não seriam afetados, fez a ocupação chegar aos apartamentos do meio. Já não havia mais lugar agradável, ou minimamente seguro, para ficar naquele edifício. Maldosos inquilinos tomaram de conta do mesmo. Agora o crime, a coação, a violência, os ratos e tudo o mais de ruim, dominavam aquele lugar.

Alguns moradores dos apartamentos superiores se aliaram com os novos inquilinos e passaram a tirar proveito dos outros moradores que anteriormente eram denominados de “privilegiados dos andares superiores”. Era uma nova adequação do antigo sistema de exploração. Só que agora por meios mais violentos.

Certo dia, por falta de manutenção na fiação elétrica, e em todo o resto, devido ao descaso, ocorreu um curto circuito em um sujo apartamento ocupado pelos ratos nos andares do meio, a faísca se tornou chama e o fogo pela quantidade de sujeira, logo se espalhou por todo o edifício. Ali sem chance de se salvar das chamas, todos os que se encontravam no prédio, morreram carbonizados, inclusive Luís Inácio e seus filhos, que na nova configuração daquele lugar, comandavam um imbricado sistema de aproveitamento do trabalho dos outros, ou melhor dizendo, se aproveitavam descaradamente do trabalho dos outros inquilinos que não eram do seu círculo de amizade. Contudo, o fogo pôs fim a tudo isso. Valdemar e seu amigo João, souberam da notícia com tristeza, mas satisfeitos por terem saído a tempo, de se protegerem do caos. Suas vidas, só prosperavam com o passar dos anos, e suas famílias estavam muito felizes.