Avô

Avô

Ela era muito criança ainda e com certeza não se lembrava de todos os detalhes aos quais sua memoria não fora capaz ainda de formatar. Era uma tarde quase sombria e fria e a chuva fina e intermitente molhava seus óculos escuros com uma insistência angustiante. A trilha pedregosa não era obstaculo sério a sua caminhada, o frio gelava suas têmporas e a ponta de seu nariz perfeitamente posto em sua face angulosa. Lembrava-se vagamente de uma doce melodia que embala um velório quase alegre de uma noite interminável. Lançou mão de sua alegria mórbida colocando-se num breve choro silencioso e intimista ao lembrar-se que logo aquela pessoa que ali jazia inerte logo estaria posto e deitado numa cova rasa e lamacenta. Não se atrevera ainda a olhá-lo de perto. Seu avô em vida já era suficientemente sombrio e trevoso, mas ela sabia como de vez em quando roubar-lhe um sorriso ou até mesmo um afago em seus cabelos loiros seguidos sempre da mesma frase: “ E aí minha neta?” “ Oi vô!” Ela sorria de volta quase agradecida pela saudação. Ninguém em lugar algum poderia esquivar-se de dar devido valor ao velho. Autodidata, inteligente incrivelmente sedutor e misterioso. Alto, claro ele ainda trazia do passado ma certa beleza aristocrática. Ele fora belo e galanteador quando jovem. “O vovô morreu”. Ela ouviu a frase ao telefone e suas pernas ficaram bambas e cocas como bambus dançando ao sabor do vento de outono. “Quando foi?” “Hoje cedo. Venha logo. Mamãe esta desolada.” Ela não pensava em fugir de seu dever. Iria, choraria e o acompanharia até o fim. Não queria vê-lo no caixão. Sua atitude não era de descaso ou desobediência. O velho costumava dizer que sem espírito, nosso corpo era apenas um barquinho sem vela e preso num deserto de areia, vazio e abandonado. Ou seja nada. Ela ainda podia sentir o seu cheiro ocre, que sempre lhe fora característico, isso sempre o lembraria. Por mais que tentasse não conseguia desviar seus pensamentos de como ele devia estar feliz, afinal, naquele exato momento ele deveria estar colocando em xeque todas as suas teorias e certezas sobre a vida e a morte. Ele não vivia de teorias, mas de certezas sobre o seu lugar no mundo espiritual. Sorriu. Pôde senti-lo ali por perto “curiando” tudo com aquele sorrisinho maluquinho de criança ativa e sapeca como se nada fosse surpresa. Quase involuntariamente ela sorriu lembrando-se de seu último encontro. Ele lhe dera relíquias, eram algumas moedas e cédulas antigas que guardaria para sempre. Já era hora. Ela se importava com aquele momento. Era triste. Mas era a vida. Continuidade. A morte nunca fora o fim, ela sabia disso e sentia conforto em pensar que seu avô estava começando de novo uma nova vida em algum outro lugar.

Lady Malibe

18.08.2018