VOO CEGO
 
Aeroporto de Guarulhos, 1995. Começo de feriadão. Um formigueiro num dia de sol não seria mais frenético.

A diferença, talvez, é que no formigueiro há comunicação entre os transeuntes. E nenhuma das formigas enxerga as outras como obstáculos.

- Embarque remoto?! Que saco! - É a queixa de uma dessas transeuntes humanas, enquanto sobe irritada no ônibus. 

Aeroportos e seus ritos. Mayumi nunca vai entendê-los. Até porque é mais terapêutico achá-los confusos.

A etapa seguinte é preenchida com voltas longas e lentas por uma pista desenhada nos cantos do pátio das aeronaves; com curvas e paradas aborrecidas, sobretudo para os que vão em pé.

A nipo-brasileira olha à sua volta, enquanto se segura como pode nas barras do transporte. Idosos e crianças, que tiveram prioridade na fila, nos ritos de check-in, estão em pé, socados no corredor. Um sorriso quase perverso ameaça brotar de seus lábios. Afinal, a cena parece confirmar suas críticas ao embarque.

Mas o autocontrole e a timidez, que vêm à tona quando está em multidões, não permitem que o riso interno transpareça. Na verdade, seu gesto seguinte é bem mais simpático: estica o braço livre e apoia uma criança com a mão, antes que ela caia durante a curva que está ocorrendo. Rotina simples pra uma formiga, ato nobre e raro pra uma pessoa civilizada.

É quinta-feira da Semana Santa. Guarulhos está bem movimentado, com pessoas e aviões indo e vindo. Uma explicação mais do que lógica para seu voo de conexão ter passado por desembarque e reembarque remotos. 

Pode ser lógica para os outros. Hoje, Mayumi prefere acreditar que os aeroportos optam pelo planejamento mais fácil e menos criativo. Não pelo mais científico.
 
Ela sabe que, neste momento, sua opinião não pode ser muito considerada. Está cansada, aborrecida, com frustrações e ansiosa. Então, dane-se a sensatez. Seus pensamentos não serão mesmo ouvidos. E a cara feia - se é que transparece - pouco será notada nesse formigueiro de bípedes anônimos e ocupados.

Não tem sido um período fácil. Recebeu uma missão no trabalho que já dura quase um ano e a faz estar mais tempo fora de casa do que o contrário. Seu cônjuge até que tem tentado apoiar e dar cobertura. Mas a incapacidade da empresa sinalizar uma data para o término dessa vida cigana vem tornando as coisas azedas entre todos.

Pensar nisso sempre a faz sentir o sopro desconfortável de seu mais constante conflito. Ela adora ter a família que tem; e saber que há um lar para onde voltar de suas atividades. Uma parte sua sente paz no coração e cheiro de doces de Natal, sempre que se percebe repousando entre essas pessoas e essas coisas que estão lá, junto de sua casa. Mas há uma adrenalina, uma pulsação, um prazer inebriante nas missões corporativas. E não é só por ter muita habilidade em resolver problemas para a organização. Ou pela vaidade de ser reconhecida como boa profissional. É também - e muito - pela viagem em si.

Deslocar-se pelos céus, deixando seu pensamento flutuar como se a cabine não tivesse gravidade. Olhar pela janela e ver a maravilhosa imensidão do mundo. Imaginar-se num sem número de personagens, fazendo seus sonhos voarem mais alto que as asas da aeronave. Tudo nela parece muito vivo nessas horas. Vivo e jovem. 

O melhor seria conseguir equilibrar esses mundos. Mas não é simples. No futuro, quem sabe, com mais sabedoria e idade, ela ache um modo. Até lá, malabarismos e correrias estarão em todas as receitas de seu dia-a-dia.

Mayumi sempre foi muito observadora, do tipo que percebe pequenos gestos que as pessoas à sua volta fazem. E ao percebê-los, consegue inferir propósitos para os mesmos. Em seguida, os associa às expressões dos rostos. Em pouco tempo, tem um “perfil” de cada indivíduo. Um “retrato falado” de suas histórias e do que se passa em seus corações. Assim, as viagens fornecem matéria prima incomparável para sua imaginação e para a disposição de avaliar tudo e todos.

Claro que ela não tem como averiguar a maioria das teses que monta sobre os humanos que passam por sua vida. Não que isso lhe importe. Faz por prazer, curiosidade, ou mesmo por uma inclinação meio compulsiva.

Seus relacionamentos mais próximos já perceberam, em várias ocasiões, que o percentual de acertos de suas teorias é bem alto. A prima Mitsue chegou a compará-la aos detetives de Agatha Christie, capazes de ver, em frases soltas e expressões aparentemente vazias de personagens menores, as razões e os planos que produziram o crime em investigação.

- Nossa! Você parece a Miss Marple!!

Àquela altura de sua vida, quando ouvira essa frase, mal tinha lido duas ou três obras da escritora. Lembrava muito do intrigante “Assassinato no Expresso Oriente”. E da surpresa que tivera ao final. Pois em suas deduções, alguns personagens tinham participado do crime; mas não tantos.

Por causa do comentário de Mitsue, decidira ler a obra toda da escritora. Certamente fora divertido devorar tantos textos e apostar consigo mesma – ou com a prima – quantos finais ela conseguiria adivinhar. Mas, ao final, ficara convicta de que a prima se enganara. Ela está mais para Hercule Poirot do que para Miss Marple. Seu forte é observar pessoas, condutas e cenas. Disso, tem certeza. Interpretar relatos e documentos, nem tanto.

Assim a comparação melhor seria com o intrometido belga e seu bigode infame; e não com a doce senhora que resolvia crimes enquanto tomava chá e matraqueava com as amigas e os suspeitos.

Por tudo isso, se não estivesse tão irritada e também apreensiva,  desfrutaria melhor desses confusos embarques remotos e faria hipóteses sobre a história dos demais passageiros. Ali mesmo, no ônibus.

Por fim, o veículo estaciona ao lado de uma aeronave. As portas, contudo, demoram bastante para abrir. Pelo menos, é assim que ela percebe.

- Procedimentos de segurança. É o que dirão, se eu perguntar! Nem vou perder meu tempo. – Resmunga para si, ainda que olhando sisuda para um dos operadores de pista, quando este sinaliza ao motorista para abrir as portas.

As filas se formam novamente, agora para subir as escadas do Boeing 737. Para sua surpresa, uma funcionária da companhia aérea sai do ponto em que está e vem pedir aos passageiros que deixem os idosos e as crianças passar na frente. Mayumi aprova o gesto, e recrimina a si mesma por ter sido tão impiedosa nos pensamentos há pouco.

De qualquer forma, sua impaciência prossegue. Pois agora começa um "anda-e-para" interminável na escada e no corredor da aeronave. Ela se controla para não bufar.

Finalmente, todos sentados. As orientações de praxe são passadas pelo serviço de som, enquanto comissários de bordo fazem mímicas para ilustrar o que é dito sobre saídas de emergência, máscaras de oxigênio e assentos flutuantes.

A nipo-brasileira compreende a importância desse rito. Mas há algum tempo não presta atenção nas explicações, pois entende que já aprendeu o suficiente.


O vôo inicia. Mais calma, sentada no meio da fileira, a jovem executiva faz uma sondagem de vizinhança, para saber se está perto de tagarelas ou se terá uma viagem tranquila.

No assento junto à janela, há um jovem magro, de óculos quadrados, que lê uma publicação técnica. Aparentemente, engenharia mecânica. A probablidade de não puxar conversa a viagem toda é bem razoável, para alívio de Mayumi.

Ao corredor, senta um homem mais obeso, de cabelos claros encrespados, com a pele muito pálida. Se é do tipo falante ou não, sua expressão pouco indica. Mas a intranqüilidade no rosto mostra que não está muito confortável com o vôo.

O lado "Poirot" da executiva observa as expressões do homem, bem como os movimentos quase coreografados que suas mãos fazem para pegar uma revista no bolso do assento, ou chamar a aeromoça.

- Mexe-se como se ouvisse música. Deve trabalhar com isso. - Avalia em silêncio.

O som anuncia os serviços de bordo. A aproximação da aeromoça com o carrinho de lanches chama a atenção de Mayumi. 

A tripulante é uma mulher alta e esbelta, com maquiagem bem feita, cabelos longos e negros, unidos em um rabo-de-cavalo. Caminha com elegância em vestimentas impecáveis.

- O uniforme da companhia é de bom gosto. - Pensa a executiva.

Olhando para o sorriso agradável e estudado da moça, a nipo-brasileira fica imaginando como é a vida de quem trabalha no ar. Sabe que as escalas das companhias aéreas não facilitam estruturar vida em família, casamento ou mesmo filhos. Ainda assim, muitas vezes imaginou a si mesma como integrante de uma equipe de voo. Uma imagem que a faz sorrir e se excitar até hoje.

Chega a vez da aeromoça atender a sua fileira. A proximidade permite que a passageira leia seu nome no crachá. E nele está escrito "Tatiana".

- Bom dia. Desejam algo do serviço de bordo? - Pergunta a simpática tripulante.

Mas antes que alguém daquela fileira possa falar, o outro comissário de bordo aproxima-se de Tatiana e sussurra:
- Interrompe o serviço. Agora! 

A surpresa e a palidez na jovem bem maquiada deixam claro, para os três passageiros da fileira, que algo não está certo.

O carrinho é afastado e travado. O comissário vai para os fundos da nave e Tatiana fica no posto da frente, ainda meio sem ação. O avião começa uma descida acelerada. 

Antes que alguém interprete o movimento, as máscaras de oxigênio saem dos compartimentos.  

Um arrepio gela a espinha da passageira observadora. Súbito, ela se vê numa cena tão frequente nos filmes e livros que devorou na juventude, mas que jamais presumira vivenciar.

O magro de óculos junto à janela, igualmente pálido, puxa sua máscara. Ele não solta um pio. 

Então, ela se dá conta. Ninguém está emitindo nenhum som. O silêncio é ensurdecedor na aeronave. Isso a surpreende. Os livros e filmes sempre mostraram cenas assim como um turbilhão de gritos e movimentos desesperados. Mas não há barulhos, nem músicas emocionantes. Só um silêncio irreal.

Mayumi vê que o passageiro do lado do corredor está petrificado, sem iniciativa e sem proteção. Instintivamente, ela puxa a máscara de oxigênio e põe em contato com o rosto de seu vizinho, que sai do transe o suficiente para fixar a mesma.

Uma fraqueza misturada com tontura se abate sobre a nipo-brasileira. As imagens assumem um tom laranja; e estranhas bolas pretas ficam explodindo ante seus olhos.

Então, lembra das instruções que os comissários sempre passam no início do voo: Só se deve ajudar outro passageiro a colocar a máscara após colocar a sua própria.

Ela não fez isso. Ouviu tantas vezes a orientação, mas na hora de agir, não fez o que cansaram de ensinar. A falta de ar é muito rápida. O esforço, agora, para que seu corpo consiga puxar e colocar a máscara antes de desfalecer, é absurdo.

Assim que vence essa pequena e espantosa batalha, sequer tem tempo de recriminar sua estupidez. A voz do comandante do voo invade o silêncio sepulcral do interior da nave.

- Srs. Passageiros, aqui é o comandante falando. Peço desculpas, mas tivemos que efetuar manobra de emergência, razão pela qual não pudemos lhes passar maiores informações antes. Um defeito no equipamento provocou a despressurização da cabine. Estamos mudando de altitude para ver se conseguimos superar o defeito. Caso isso não ocorra, precisaremos realizar um pouso de emergência no aeroporto mais próximo.

A executiva, agora respirando bem com a máscara, arrisca uma espiada na janela. Só vê morros, matagal e rochas lá embaixo. Vira para a frente e vê a aeromoça Tatiana com sua máscara, mas de pé, confusa quanto ao que fazer.

- Se a tripulação está assustada, o negócio é feio mesmo. - resmunga para si, tensa.

Olha para trás. Todos paralisados. Ninguém sequer move a cabeça, além dela mesma. 

O tempo congela. Mayumi pensa na morte. Depois, várias imagens de sua vida vão passando em seus olhos. 

Isso, pelo menos, está igual aos livros. - Eis o que ela pensa.

As imagens, o silêncio, a paralisia. Tudo isso a faz duvidar de sua percepção de realidade. E se perguntar se já não estão mortos, num pouso mal sucedido. Se já não são espíritos iludidos, que deveriam partir mas não se dão conta.

O comportamento tão concreto e inesperado da aeromoça, ainda de pé, virando-se de um lado para o outro, como uma máquina com falha na programação, desfaz a ideia absurda; e lhe dá convicção de que ainda estão vivos. Afinal, não dá pra acreditar que alguém iria para o mundo das almas num movimento tão errático e angustiante.

Então a nipo-brasileira começa a sentir as imagens, ao invés de apenas vê-las. Um aperto no coração desmancha a investigadora, a observadora e a crítica numa só estocada.

E se este for mesmo seu último momento? Quantas coisas não disse para sua família. Quantos colos não deu para seus filhos. Quantos encontros com os amigos deixou pendentes. Quantas vontades reprimidas, adiadas.

E as contas a pagar, os registros de bens, as roupas no armário nunca estreadas? Alguém encontrará essas coisas e dará o destino certo? Ela sempre controlou tudo sem dar grandes explicações aos outros. E agora?

Aquele fetiche nunca confessado para seu companheiro, por achar que seria visto como infantil demais. O passeio de lazer que não fez. A torta de berbigão que sua madrinha prepara e que ela jamais provou, porque imagina que o bichinho pode ter um gosto desagradável.

Até mesmo Cláudio, o tímido e íntegro amigo que sempre arrastou asas por ela, mas que jamais recebeu um "esqueça-me" ou um "chega mais" para sair da paralisia contemplativa. Ou simplesmente para saber que não era invisível. Por que o deixa nessa prisão? Não é seu amigo? Não deveria ser simples e honesto tratar dessa questão? 

Vidas que foram e histórias que não aconteceram desfilam em seu coração, tornando a iminente queda do voo um assunto menor. Sua mania de analisar tudo e todos, de repente, parece um denso e pesado vazio.

As vozes dos filhos e do cônjuge são a última sensação que tem antes de sair do transe com a nova mensagem do piloto.

- Senhores passageiros, aqui é o comandante novamente. A mudança de altitude permitiu a superação da falha de pressurização. Fomos autorizados a prosseguir a viagem até Navegantes. Porém, para garantir que a falha mecânica não retorne, iremos sobrevoando o mar e nesta altitude até o final. Dentro de instantes já poderão remover as máscaras.

O avião retorna à velocidade normal e em posição estável.

Mayumi retira sua máscara e respira desconfiada. Mas o ar está adequado. Oxigênio e alívio penetram em seu corpo sem fazer esforço.

Aos poucos, todos os passageiros fazem a mesma coisa. Mais dez minutos e o serviço de bordo é retomado.

O voo parece quase o mesmo de antes da ocorrência. Exceto por dois detalhes: Da janela, dá pra ver o mar bem mais perto do que o habitual; e todos os passageiros estão com uma inesperada vontade de conversar.

Mayumi também. Seus companheiros de fileira passam agora a ter nomes e histórias, não especulações.

Flávio, o da janela, é mesmo engenheiro mecânico.  Fala de seu hobby, que é estudar nuvens, e começa a descrever cientificamente as que estão ali no céu, naquele momento. Também especula, com termos técnicos, qual pode ter sido a falha de pressurização do voo.

- Estudei mecânica aeroespacial. Não me especializei nela, mas alguns princípios e sistemas acabam ficando. - Fala Flávio, oscilando entre a humildade genuína e alguma euforia.

Artur é mesmo da música.

- Sou maestro na Bahia. Estou indo a Blumenau participar do Festival de Orquestras do Vale do Itajaí. - Fala sorrindo, enquanto enxuga o suor da testa.

Tatiana, ao servi-los, fala também de seu hobby. Ela gosta de tocar violino e vai assisir parte do festival de Blumenau com seu namorado, que é piloto de táxi aéreo.

- Ora, mas que coincidência! Gostaria de dois ingressos de cortesia? - Diz Artur, entusiasmado.

- Puxa, Sr. Artur ! Eu adoraria! - Responde Tatiana, enquanto o maestro saca os bilhetes de seu bolso.

A executiva também fala sobre si. E se surpreende por ter gostado de fazer isso.

Meia hora depois, o Boeing 737 toca a pista de Navegantes, sob aplausos de vários passageiros. Inclusive Mayumi.

Ao descerem, os recém-apresentados companheiros de viagem trocam cartões e desejam felicidades uns aos outros.

A Executiva caminha para a esteira de bagagem, revivendo em seu coração a viagem inteira. 

Enquanto pega as malas, a crítica e observadora mulher olha para algo que ninguém mais vê. Os voos cegos que vão dentro de si. As perguntas que vai deixando sem respostas. E o medo da brevidade de tudo, recado maior colhido no episódio. 

Mesmo mexida, seu lado metódico ainda trabalha. Neste momento, projeta uma lista de ações que quer tomar nos próximos dias, após o feriadão.

Vai deixar escrito com alguém um roteiro sobre contas, registros e seguros. Irá falar com seu chefe sobre as indefinições de prazos em suas missões. Ligará para os amigos combinando um almoço, café ou happy hour. E vai achar pretextos para usar mais suas roupas.

Tudo isso depois do feriadão. Porque nos próximos três dias, ela só quer abraçar sua família e dar muita atenção a todos eles. E quando o domingo chegar, criará coragem para falar com seu parceiro sobre seus fetiches "bobos". 

Mas como nada é tão metódico ou previsível, ela continua sem saber como quer agir com o amigo Cláudio. Ou com os inestimáveis berbigões da madrinha. Quem sabe, na próxima chacoalhada que a vida lhe der, ela pensa em alguma coisa.