Amigos diferentes

Amigos diferentes

O cinema sempre foi a nossa melhor diversão, eu e Marta, a mulher da minha vida, eu o homem da vida dela, agora e para sempre até que o trabalho nos separe .

Quando aceitei a promoção achei que fosse um forma de me situar no mundo, porém ser chefe é muito solitário, cães raivosos habitam o seu sono, e você não tem mais tempo pra nada, é o abismo da negação da vida, ai pode perder o que é mais valioso.

Naquele dia estava atolado em problemas do trabalho, com papéis até o nariz, já algum tempo trabalhando sozinho, eu pedi uma secretária alguns meses atrás sem resposta, foi nesse dia desesperado que Doutora Lola, a dona do hospital , chegou com ele.

Claro que meu primeiro impulso foi dar uma boa rizada quando vi aquela figura.

Baixo, bigode ralo, magro, ele parecia ter uns vinte e poucos anos, olhos dispersivos, ovais, com certo estrabismo, hábito de passar a mão sobre a cabeça , depois cutucar o nariz e parecia contar os objetos do escritório.

-Ele é autista – disse dona Lona – não encoste nele, faça perguntas diretas visando objetivo, não mude ele de horário, ele é ótimo em inglês, memória de cientista da NASA e torce para o Real Madri.

Eu puxei o braço dela e a levei até a sala de café, queria que ela percebesse a minha decepção.Ela estava de brincadeira? O chefe de clínica precisava de uma secretária de verdade, se ela quisesse fazer caridade que levasse para outro setor.

-Ele é de verdade !A pessoa perfeita para o cargo– disse a neurocirurgiã dona do hospital ,ela saiu e me deixou sem palavras.

Ficamos em silencio, vi que ele ficava contando, parecia deslocado, esperando alguma palavra de aceitação, então para mostrar o meu poder de observação falei:

-Quantos objetos temos nesse escritório? – disse sorrindo.

-Contei duas vezes , precisamente 1510– ele passou a mão sobre a cabeça, fez uma contagem com os dedos e completou – está muito bagunçado aqui, posso arrumar?

Fiz que sim com a cabeça.

As semanas se passaram e Warley, cumpria as tarefas, porém eu não me acostumava com ele, precisava pensar antes de falar, não queria ferir os sentimentos de um autista.

Uma vez gritei com ele, por causa de um erro meu, não tinha colocado o papel com o balanço do mês de agosto e os números deram errado, Warley urinou nas calças.

Faltou dois dias e me atolei, tive que ligar para Marta para desmarcar o jantar de comemoração, por causa de uma reunião com fornecedores de material que não consegui desmarcar , não estava dando conta sem o Warley.

-Hoje é nosso aniversário – disse Marta e desligou antes que eu argumentasse, fiquei meio chateado, porém em dois minutos estava perdido em minha desorganizada agenda.

Liguei para Warley voltar, ele perguntou se ia gritar com ele, eu disse que não.

Passou três meses e dona Lola me ligou.

-Não grite mais com ele.

-Sim senhora – disse engolindo a raiva e completei - ele vai bem, eu é que preferia uma ajudante onde pudesse descarregar a minha tensão, não gosto de ficar com um secretário que não erra e que não posso errar com ele.

-Você não pode gritar com ninguém, eu vou te dar um voto de confiança, vou deixar ele ai porque vi que ele gosta de você, convide ele para comer um cachorro quente e se para se desculpar, sei que é capaz disso.

Tomei coragem e falei baixinho:

-Dona Lola , eu estou muito agradecido, sei que a senhora foi amiga de meu pai, sei que está me dando uma força nesse emprego, mas...

Ela desligou, só escutei um cuida dele, confio em você.

Olhei para Warley , ele estava na sala , olhava os papeis, parecia estar preocupado com algo, quando me viu ficou de pé.

-Doutor Paulo!

-Já acabou o seu expediente – disse, tentando ser cordial, mas ele entendeu como um ordem – eu quero que me despolpe por gritar, algumas vezes os problemas segam a gente e gritamos com os amigos.

Ele começou a juntar os papéis sem olhar e pegou a bolsa e ia saindo quando eu falei.

-Quer comer um cachorro quente?

-Não abrigado, minha avó me espera, ela está com Alzheimer, doutora Lola vai muito lá em casa, mas acho que está ficando doente também, ela ficou muito magra.

Fiquei no escritório sozinho pensando na vida.

O telefone tocou, foi bom ouvir a voz de Marta, o problema foi o que ela falou: ela disse ia viajar com a irmã,e que quem sabe na volta poderíamos conversar, tentei argumentar contra aquela viajem, e disse que a irmã dela nunca gostou de mim, ela disse que eu via coisa onde não tinha nada e deixava de ver onde realmente tinha, e que não estava com cabeça para aquela conversa.

Fiquei só dormi no sofá da minha sala, no dia seguinte fui acordado por Warley.

-Doutor, o senhor dormiu aqui?

-Acho que cochilei.

-Trouce um cachorro quente, dormi nesse sofá não vai fazer bem para coluna – ele me entregou em uma vasilha fechada limpa.

Eu fui ao banheiro.

Lavei o meu rosto e pensei em Marta, era terça e tive vontade de ir no cinema.

Gritei do banheiro.

-Warley, olha pra mim que filme está passando cinema.

Ele falou todos os filmes e seus horários de cabeça, fiquei tão surpreso que ele percebeu.

-Eu leio o jornal todas as manhãs – ele sorriu – minha cabeça grava tudo , fica tudo lá dentro, mas tem gente que não gosta e as vezes não sei ficar calado, uma vez um rapaz me perguntou uma marca de cigarros, eu falei umas trinta e ele quebrou os meus dentes com um murro.

-Pois bem, eu queria ter essa memória.

-Eu não, gostaria de esquecer tudo.

Desci do carro e entrei em casa depois do cinema, liguei para Warley, ele não atendeu o celular.

Sentei na sala e tomei uma cerveja, a última, fiz umas dez tentativas de ligação para Warley, queria trocar uma ideia sobre Marta e o trabalho, e vi que não tinha mais ninguém para conversar, Warley havia se tornado meu único amigo.

Dormi no escritório novamente, olhei o celular e nada de chamadas, nem de Marta , nem de Warley, então decidi ligar para Lola, atendeu chorando, falou que estava em um hospital, que Warley tinha sido espancado por garotos da escola, só porque uma menina perguntou uma capital no ponto do ônibus, ele falou mais de cem capitais, foi automático, sem parar, ele não tem controle, disse Lola, um dos meninos argumentou quando a polícia chegou :” falamos para ele parar, mas o imbecil não parou ai tive que fechar a boca dele na porrada”.

Ela disse que ele estava bem agora.

Duas semanas depois, eu entrava no quarto de hospital do Warley com uma camisa do Real Madri e de mão dadas com Marta.

-Ele curou você. - foi o que Marta disse no meu ouvido quando entramos no quarto do hospital.

Lola estava lá, conheço quando uma pessoa esta debilitada, perguntei o que estava acontecendo, ela me puxou para um canto do quarto e me disse que só tinha alguns dias.

-Está avançado - baixou a voz – sabe como é “ca” de pâncreas -ela estalou os dedos e acrescentou com um sorriso magro - , quero que cuide dele, seu pai foi mais que um irmão para mim e Santa, a avó desse menino – Lola olhou para a janela com lágrimas nos olhos – ela foi minha companheira por todos esses anos.

Segurei no braço dela e depois a abracei.

Quando ia saindo do quarto Warley me perguntou, enquanto dava um abraço nele.

-Você gosta mesmo de cachorro quente ? – ele falou olhando de rabo de olho para Lola , baixou a voz e disse – eu sei que ela namora a minha avó, elas pensam que me enganam.

Desconversei:

-Pois é , eu que achei que fosse você quem gostasse de cachorro quente – disse em voz alta.

Olhamos juntos para Lola e ela sorriu.

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 10/09/2018
Código do texto: T6444354
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.