TRANSPARENTE

TRANSPARENTE

Naquele dia Felipe acordou com o frio gelando seus pés. A boca estava seca, não lembrava há quanto não escovava os dentes. Estava enroscado com uma caixa de papelão, na soleira da porta, da casa que foi de Júlio de Castilhos. As pessoas passando, virando a cara, ignorando-o. Era uma sensação estranha, a pior de todas, como se ele fosse invisível, só os mais velhos, de vez em quando, davam umas olhadas medrosas, achando talvez, que seriam assaltados. Como não tinha espelho, não sabia a aparência que estava, provavelmente não era das melhores. Já tinha sido enxotado da frente da catedral, da praça da matriz, da escadaria da Borges, pois esses lugares já tinham donos, e não admitiam sócios. As esmolas andavam escassas, mas lá ele já estava há duas semanas e ninguém havia amolado.

Pelo vento gelado que vinha do rio, Felipe deduzia que o inverno estava chegando e que seria dos mais frios, tinha que se cuidar, se não poderia morrer. Para os abrigos da Prefeitura não gostava muito de ir, lá tinha muita gente dizendo o que ele tinha que fazer, a hora de deitar, tomar banho gelado, só gostava da sopa quente servida antes de deitar e do café ao levantar. Depois tinham que voltar pra rua, aí ele procurava um lugar quente ao sol. Todos os anos eram iguais.

Felipe gostava do final de ano, era época de fartura, recebia tanta comida que ficava com dor de barriga. Eram restos de peru, porco, lentilha, salada de batata, farofa, frutas em calda. Recebia roupas, sorrisos, olhar piedoso, algum dinheirinho, chegava sentir-se uma pessoa de verdade. Pena que as pessoas, depois que passavam as festas, voltavam a ignorá-lo, ficavam carrancudas, mal humoradas, com aqueles olhares de desprezo. Depois dessa abastança, voltava a revirar os lixos, implorar, pedir, para o sustento.

No período do verão era mais divertido, podia dormir em qualquer lugar, usar pouca roupa, tomar banho e lavar as roupas no Guaíba, passear na redenção, namorar, caminhar pela cidade, enfim, respirar um pouco.

Foi numa dessas ocasiões que conheceu a Cleusa, a primeira mulher de sua vida, pois até aquele dia, só tinha se deitado com outros homens. Cleusa era diferente, graciosa, sempre rindo, o cheiro era diferente, a pele era macia. Fazer sexo com ela foi maravilhoso, sentiu vontade de beijar, de abraçar, de ficar ao lado dela. Não queria mais saber dos veados, apesar do dinheiro que de vez em quando, lhe davam. Viveram aqueles dias como se estivessem no paraíso, acamparam na beira do Guaíba, cozinhavam nas latas, tomavam banho juntos, dormiam enroscados. Até que um dia ela sumiu. Procurou-a em todos os lugares da cidade, sem sucesso. Disseram que ela tinha voltado para o marido, lá para as bandas de Livramento. Pensou em ir atrás, mas logo desistiu, devido à distância, e ele não queria mais voltar para o interior, lá ele passou muita fome, muita necessidade, era melhor esquecer a Cleusa e tocar a vida adiante.

Tava na hora de levantar, se espreguiçar e ir atrás de alguma coisa pra comer. Era um dia de sol radiante, e ele tinha que esquentar os pés gelados. Juntou suas tralhas, enrolou o papelão e foi em direção a catedral, pois disseram pra ele, que o papa estava em visita ao Brasil, e as pessoas ficavam mais caridosas nas igrejas,ele correria atrás de uns trocados. Viu a entrada já tomada de concorrentes, mesmo assim se ajeitou num canto e começou com as lamúrias, “não comi hoje tia” “minha barriga está doendo de fome” “dá um troco pelo amor de Deus”......passou uma, duas, três, até que a quarta tia, lhe estendeu a mão com uma nota de dez reais, que ele quase perdeu a fala, só conseguiu dizer um “obrigado”, bem baixinho.Depois de duas horas de lamentos, tinha juntado dezessete reais, entre moedas e notas. Estava um dia bom mesmo, mas Felipe estava com muita fome, tinha que comer. Levantou-se e foi em direção ao mercadinho, era outra batalha, pois o dono não gostava que entrasse naqueles trajes fedidos, tinha que esperar diminuir o movimento, e pedir para um atendente, que lhe vendesse um pacote de bolachas recheadas, um pão, uma lingüiça, uma garrafa de cachaça , e um litro de refrigerante. Por uns três dias estava tranqüilo, não precisava mendigar, a féria tinha sido boa. Só tinha que se cuidar para não ser roubado. Voltou para a entrada da casa, que já considerava sua, escondendo o que tinha comprado, pra não despertar a cobiça dos outros e começou a comer aos poucos, bebendo a cachaça misturada com o refri, e o mundo começou a ficar mais colorido, a vida menos amarga.

Acordou quase ao anoitecer, com uma dor de cabeça e um gosto amargo na boca, novamente lembrou que precisava escovar os dentes, mas aonde, teria que deixar para o outro dia, tinha medo que roubassem seu lugar. A necessidade, fazia ali mesmo, em cima de um saco plástico, depois enrolava e jogava longe. Ajeitou-se nos papelões, bebeu mais alguma coisa e dormiu.

Eram quatro horas da madrugada, quando um grupo de jovens, estacionaram o carro na rua Duque de Caxias. Viram aquele mendicante todo enrolado nos papelões e resolveram colocar fogo no pobre , afinal de contas, quem vai sentir falta deste pedinte, e eles estavam a fim de se divertir. O mais velho foi até o carro e trouxe uma garrafa de álcool, despejando sobre Felipe, em seguida os outros tocaram fogo, logo as labaredas tomaram conta do corpo e de suas tralhas. Os jovens foram embora dando risadas.Quando ele acordou e sentiu todo aquele ardor misturado com calor, ele começou a gritar e pular, mas foi em vão, caiu na calçada e foi consumido pelo fogo, terminando assim sua passagem pela terra, depois de 23 anos. As chamas se alastraram pela porta do museu e tomaram conta do prédio, devorando-o.

No outro dia, as manchetes dos jornais, diziam, “Mendigo colocou fogo no museu Júlio de Castilhos e morreu queimado” “Prédio histórico é tragado por incêndio, provocado por mendigo”.

Naquele mesmo dia, a prefeitura começou a recolher os mendigos com mais rigor, com ajuda da Brigada Militar, levando-os para abrigos, pois desconfiavam que poderia haver outros incêndios provados pelos pobres diabos.

Reforçaram a segurança de outros prédios históricos.

Pedro Guilherme Holz.