Cálice
Até 31/12 o Zé Ninguém dormia no albergue e comia um pão com margarina e bebia um copo de café com leite, todas as manhãs e sem custo. Usuário e dependente químico registrado, vivia à margem.
No dia 02/01, o Zé Ninguém não conseguiu dormir no albergue. Mudaram as regras: Se não trabalhasse pela cama e pelo pão com margarina, não teria acesso a lugar pra dormir.
Havia uma placa na porta - "Atenção Srs. albergados: Favor pegar o carrinho de picolé na loja ao lado, vender o produto e comprar o seu pão e quitar sua dívida com o abrigo. Porta aberta até as 21h. Atenciosamente".
No dia 3/1, Zé Ninguém não entrou no abrigo. Passou o camburão e levou ele lá pra não sei aonde. Ele faria parte de um barranco bem no alto dos Cocais.
O moço que via tudo acontecer, sentia algo ruim, mas a música do Chico Buarque tocava: "Pai, afasta de mim esse cálice, cálice..."
E temendo, calou-se. Pois nunca mais ninguém ouviu falar do Zé Ninguém. Foi sem dar notícias.