Um túmulo... muitas vidas

por Gustavo Pilizari

gustavopilizari@gmail.com

Sorrateiramente, derretendo frente aos embaçados olhos...

(fica claro que não observa a paisagem a sua frente; diria, é fato, tendemos sempre a mirar memórias)

--- Você não vê que sua vida é constituída de sua única e brutal condição? Aquilo que você tanto presa em chamar de vida só é por causa de você... não existe vida sem você (entretanto, você não pertence só a você)... uma pessoa enterrada é uma história nunca mais vista, nunca mais conhecida... cada um carrega a vida como pode, cada um é um lindo cadáver enlutado; sua presença é seu velório...

(no espelho oblongo no pálido corredor, meio em tom sépia de esquecimento, uma lufada fina uiva e anuncia a tarde que cai. No espelho de molduras grossas, entalhado em estiloso espírito rococó, jaz uma puída foto de um fresco rosáceo rosto... brevemente, essa fotografia que você vê será a eterna presença presa a uma base tumular... e, lá, repousará um indício de vida (que, venhamos, não dirá nada a ninguém que por ali prender um olhar de instante – um ninguém habitará tal espaço: um depósito de vidas, para ser mais exato))

O relógio cuco saltita fora de sua rudimentar casa para avisar que são seis da tarde abraçada em escuro véu.

(a foto no espelho lembra da vida; diria que, ao colecionarmos fotos, colecionamos, na verdade, legitimidade de vida; precisamos reforçar e lembrar que já vivemos... reforçando uma vida, deixamos outra de lado - podemos dizer que estamos em velório e nos levantamos de vez em quando ao perceber que os outros nos chamam. Quando ninguém mais legitima nossa existência, temos os trágicos álbuns de fotografia para buscarmos evidência de existência)

(ouça o trimm... trimm... trimm...)

- Aló!

- Sim, é ela mesma...

- Nossa...

-

- Sinto muito, boa noite...

-

(... tumm... tumm... tumm... esquece de encaixar o telefone no gancho, está paralisada...)

De repente, um soco fundo, a garganta dura... a saliva se torna pedra... não dá para engolir a desolação sem arrancar lágrimas...

(e agora? Parte daquilo que você legitimou de vida é levado ao túmulo... quanto de você some a cada morte? Estamos minguando a cada memória que vai... o corpo alheio carregará ao solo as lembranças - pó de lembranças... e, lá estará parte de seu sepultamento antes de sua chegada... como reaver esta vida? Há justiça suficiente para resgatar a vida num corpo morto? O defunto morre com dívida, nos tira e rouba vida sem hesitar e não é sentenciado criminalmente... o morto vilipendia vidas...

--- Quando eu for, levarei muitas vidas...

Gus Pilizari
Enviado por Gus Pilizari em 03/11/2018
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