Pitu

Na cabeça de Ernesto pairou uma dúvida nos últimos dias: quinta-feira já é final de semana? Era uma inquietação menos conceitual e mais moral. Significava: já posso passar no Bar do Zangado e tomar minha Pitu – marca de cachaça preferida dele – sem o peso de possivelmente embriagar-me enquanto trabalhadores tocam esse mundão sem minha ajuda, já que estou aqui, tonto.

Aposentado há apenas seis meses, ainda está se acostumando a fazer nada sem que isso seja uma escolha. No serviço público fazia nada de uma forma mais metódica, cumprindo carga horária, em um mesmo ambiente, com os mesmos parceiros de inoperância. Também refletia sobre isso.

Além do mais, “espalhar o sangue” - como gostava de dizer - no Bar do Zangado era uma tarefa muito mais fácil a ser realizada quando era efetivo do Estado. Escorregar a Pitu na garganta depois de um dia inteiro de “trabalho” era o pretexto perfeito, não importasse o dia. “Eu mereço”.

Agora, sem muitas obrigações, beber tem dia e hora certa. Difícil merecer relaxar depois de um dia inteiro relaxando, melhor fazer isso quando todo mundo faz, aos finais de semana. Sem muita convicção, pensou; “é, acho que quinta já pode”.

Pesou a matemática. Ernesto considerou os sete dias da semana. Percebeu que por ser número ímpar, se dividisse em dois, como usualmente fazemos (meio e final de semana), teria que invariavelmente deixar um grupo com mais dias. E seria muita sacanagem deixar o fim de semana com quatro dias e meio de semana só com três.

Decidiu, então, dividir em três. O primeiro grupo seria composto por segunda, terça e quarta, o segundo apenas por quinta, e o terceiro por sexta, sábado e domingo. Dessa forma teve a clareza que o primeiro grupo com certeza era dias de semana e os do terceiro eram final. A quinta foi relativizada, como estava literalmente no meio, ficou a critério do usuário.

Esperou até às 17 horas e desceu rumo ao estabelecimento, a duas quadras de distância de onde mora. Na verdade, jurou que sairia às 18 horas, não aguentou.

- Àquela uma Zanga – disse ao dono, o Zangado, que vivia sorrindo.

O Bar do Zangado era um boteco de médio porte, poucas mesas, porém um balcão enorme. Aceitava do pobre ao rico, mas só os pobres frequentavam. Ernesto tinha seu lugar cativo no balcão, nem sempre sentava nele, gostava de pensar que tinha, só isso.

Tomou a primeira dose na companhia de mais dois rapazes. Um estava sempre ali, o outro, nunca tinha visto. A Pitu desceu pedindo passagem. Sempre tinha certa ardência na primeira dose, depois ficava macia.

Ernesto levou muito a sério a história que um colega de bar o contou. Disse ele, ter ouvido de um médico, que cachaça é um santo remédio para o coração e colesterol. Quando bebia, pensava nisso também, mas sempre guardou a recomendação caso fosse questionado da razão pela qual bebe. No entanto, nunca precisou se justificar.

Depois de mais umas duas doses o bar já estava com balcão cheio. Numa das paredes uma placa com os dizeres “fiado só acima dos 100 anos acompanhado dos pais”. Ernesto sempre lia a placa, mas não pensava em nada, só lia. Zangado copiou a frase de um salão de beleza.

Quando viu a primeira vez, achou genial. Fazia mais sentido ainda naquele salão - pensava ele - porque se por acaso existir alguém com mais de 100 anos com pais vivos, ainda sim, provavelmente, não teria cabelo.

Bem ao lado de Ernesto acomodou-se o operário de uma fábrica da região. O recém-aposentado soube disso porque ele falou quando contava um caso do trabalho, que precisava ser ambientado. O operário contava a história para Zangado, mas como esse andava de um lado para o outro do balcão atendendo, se virava para Ernesto, que prestava atenção.

Depois da história contada, e de outras mais, Ernesto pede mais uma. Ele só ergue o copinho, Zangado já despeja o destilado no recipiente. O operário, acompanhando a cena, reparou que, logo após servi-lo, Zangado anotou algo num caderninho, guardado dentro de uma gaveta.

- O Zangado, esse caderno não é pra anotar fiado não, né? – perguntou o operário.

Zangado sorriu, olhou para Ernesto, ficou em silêncio uns três segundos e disse:

- É mais ou menos.

- Como assim mais ou menos? É ou não é? – indagou o operário num tom amistoso.

- Fiado, fiado não é, porque ele me paga todo fim do mês.

A fama de Zangado era de nunca vender fiado. A placa só era uma demonstração bem humorada dessa, digamos, austeridade empresarial. Sabendo disso, o operário imprimiu um ar mais sério no decorrer do diálogo.

- Mas Zanga, quantas vezes já não pedi pra você pendurar e não deixou!? Quantas vezes já não vi você saindo do sério com gente que se negava a pagar ou pedia pra pagar depois!?

- Não, não! O caso do Ernesto é diferente. Ele frequenta meu bar há muitos anos. Nunca deixou de me pagar, criei confiança. Além do mais é funcionário público de carreira, tem estabilidade. Agora que se aposentou.

Fechou a cara, fingiu que limpou o balcão, lembrou que podia dizer mais alguma coisa e completou:

- E outra coisa. O bar é meu. Vendo fiado pra quem eu quiser.

O Operário então fez uma pergunta provocadora:

- Quer dizer então que porque sou um operário pobre não vou te pagar? Quer dizer que sou desonesto?

Ernesto assistia ao diálogo meio surpreso. Não imaginou que viraria algo mais sério. Decidiu, então, intervir.

- Não tem nada a ver meu amigo. É claro que o fato de você ter menos dinheiro não te faz desonesto. O que o Zanga está querendo dizer é que ele tem informações suficientes a meu respeito. E que isso o tranquiliza na hora de vender fiado.

Para quem já tinha bebido umas doses, Ernesto concatenou bem a ponderação.

- E se você morrer? – provocou ainda mais o operário.

Zangado fez jus ao apelido e, bravo, interrompeu.

- Ó, você ser pobre não tez faz desonesto, eu concordo. Mas ainda assim continua pobre. E vender televisão fiado pra pobre é fácil. Se não pagar toma de volta ou mete na justiça. Agora, pinga não. Uma vez que engoliu, não pego de volta. Então paga na hora ou não bebe.

O operário também já nervoso pega a carteira no bolso, mostra uma certa quantidade de dinheiro e diz:

- Pois tá vendo isso daqui? É dinheiro limpinho que não devo pra ninguém e gasto onde quiser. E por você ser esse babaca que tá sendo, mesmo tendo dinheiro, hoje não te pago. - virou o resto da cachaça que ainda havia no copo e fez menção de sair do bar.

Zangado, puto, contornou o balcão e foi pra cima dele. Todos os clientes acompanhavam o entrevero desde o meio, quando o tom subiu. Seguraram Zangado, abordaram o operário, entenderam os detalhes da história e, ao cabo, fizeram ele pagar o que devia.

O operário nunca mais voltou ao bar. Ernesto deu um tempo, mas logo voltou a frequentar o estabelecimento. No primeiro dia que voltou, logo após a confusão pediu:

- Zanga, àquela uma.

Zangado, sorrindo, pegou a Pitu. Abriu com a destreza de sempre, serviu e disse meio constrangido:

- Dois reais.