Louça suja

Entro na cozinha depois de enrolar o quanto possível. É sempre assim, ando, vou à geladeira, pego algo, volto pra sala, enrolo mais um pouco, mexo no celular, dou uma bisbilhotada na TV. Meu ritual procrastinatório de preparação para lavar louça sempre funciona, cria clima para a execução da tarefa mais típica de uma casa.

Lavar louça é, sem sombra de dúvidas, uma atividade terapêutica. Não via com esses olhos, aliás, quando a louça é muita, e suja pra caramba, ainda fico meio impaciente. Comecei a virar a chave depois de assistir uma entrevista do então técnico do São Paulo Futebol Clube, Muricy Ramalho, em que ele confidenciava gostar de lavar louça após uma derrota. Segundo ele, o ato de esfregar uma panela o distanciava do sentimento amargo do revés em campo.

Estranhei o refúgio no prato sujo, mas tentei sentir essa mesma sensação - deu certo. Com a prática, a repetição mecânica do movimento necessário para esfregar o talher usado, causa uma espécie de hipnose. E a sucessão de talheres, pratos, copos, te transportam para outro universo.

Minha avó, outro dia, ao dirigir uma crítica a minha tia, filha dela, disse que não entendia ela não ter terminado a faculdade de contabilidade iniciada na juventude.

- Você quer ficar a vida inteira ariando panela menina?

Era uma referência ao fato de Tia Rosângela ter casado cedo demais, e por isso, abdicado de qualquer ambição profissional ou acadêmica para se dedicar aos filhos e marido. Na verdade, não a culpo, meu tio é bem gente boa e ariar panela (sic) é legal, como advogo aqui.

Começo reunindo os objetos espalhados pela cozinha (eventualmente outros cômodos) e colocando-os na pia de inox. Dobro a toalha da mesa, levo até o quintal, abro e abano. Sempre tem migalhas de pão ou outras sujeiras de refeições anteriores. Coloco a tolha de volta. Ali ficará a louça já lavada, na medida em que não mais couber na pia.

Dirijo-me ao campo de jogo. Na pia sigo um ritual. Estabeleci uma ordem na lavagem, não em todo o processo, mas pelo menos no começo e no fim. Começo a partida identificando que tipo de modificação na composição da louça suja tenho que fazer para adequá-la a minha ordem.

Antes, porém, jogo todos os excessos de comida no lixo. Também jogo água nos recipientes em que, por algum motivo, a sujeira já está dura. Isso acontece principalmente nas panelas. Muitos usam a tática de preencher a panela com água e ferver no fogão para sujeira amolecer rapidamente. Recorro a essa estratégia raramente, dá muito trabalho e as garantias são poucas, por conta do exíguo tempo de contato com o líquido aquecido. Só vai gastar seu gás.

O certo mesmo é, depois de cozinhar, se ver que a coisa está preta – literalmente - já mete água. Até porque brigar com uma sujeira dura em uma panela faz parte do rol de situações na lavagem da louça que tira seu caráter terapêutico. A lavagem tem que ser fluida.

Na louça de hoje não enfrento este problema. Tenho a panela do arroz e uma do omelete, que fiz no almoço. A do omelete, conforme minha cartilha, já está com água desde o fim de sua preparação. A do arroz, não precisa (a não ser que tenha queimado). Tenho ainda sete copos, três pratos grandes, dois pratinhos, cinco garfos, quatro facas, duas colheres grandes, duas colheres pequenas de sobremesa e mais cinco potes de plástico com suas respectivas tampas. Uma louça média. Calculo de 30 a 40 minutos.

Há alguns anos, morando sozinho e fora do país, demorei quase três horas para terminar uma louça – foi meu recorde, quase uma maratona. Estava tão atarefado com os estudos que deixei os utensílios acumularem demasiadamente. Algumas coisas estavam tão malcheirosas que tive de lavar duas vezes. Pode até ter sido terapia, mas de choque.

Coloco sempre os pratos dentro da pia, os maiores embaixo e os menores em cima. Em seguida coloco os talheres sobre os pratos. Reúno os copos no lado esquerdo superior da pia, os potes do mesmo lado, um dentro do outros se possível. As panelas ficam onde dá. Hoje estão no fogão ainda.

Tenho um escorredor branco, zero bala. Cabe mais louça que o antigo. Deixo-o do meu lado direito. Agora minha pia já parece uma linha de produção de dar inveja ao Henry Ford. Do meu lado esquerdo a louça suja, no meio onde será limpa, e a minha direita ficará para escorrer o excesso de água.

Meus produtos de limpeza se resumem a um detergente de eucalipto, um sabão de coco, uma esponja dupla face - aquela com um lado amarelo macio e o outro verde mais áspero -, além de um pedaço de esponja de aço, que uso pouco.

Coloco detergente na bucha dupla face, começo pelos talheres. Gosto dos talheres porque não têm segredo, só esfregar num movimento repetido pra frente e pra trás, duas, três vezes e pronto. Faço com certa quantidade sem enxaguar, daí passo água em todos juntos. Rapidamente meus talheres estão limpos. Como são pequenos, aparentam render mais, me sinto mais engajado, por isso ótimo para um começo.

Na primeira volta dada pela bucha num dos pratos – minha segunda etapa – já estou me vendo um grande escritor. Crio a cena de uma grande editora de São Paulo me ligando, avisando que ganhei o concurso literário promovido por ela. Penso numa possível repercussão e penso também como consolidaria minha carreira após um sucesso prematuro.

Os pratos exigem um pouco mais de técnica e habilidade para não derrubá-los. Aqui coloco detergente direto na superfície do objeto e ainda complemento com um pouco de sabão. Seguro firme, esfrego primeiro o meio, em seguida moldo a bucha ao formato da lateral do prato e faço a volta duas vezes, depende do quão sujo está. Repito a fórmula em todos, inclusive nos pequenos.

Também avalio genericamente que ser escritor de romances envolve reconhecimento mais significativo. Penso que o tempo dispensado na elaboração de cada personagem, na relevância e trajetória deles, na interação entre eles, sugere para o leitor um trabalho mais elaborado. Se bem que um bom contista tem lá seu valor. O poeta – não sei.

Os potes de plástico são os objetos mais traiçoeiros. Dependendo da qualidade do plástico a gordura não sai de primeira. Várias vezes, ao guardar a louça, percebi que a vasilha onde guardei meu macarrão ainda estava engordurada. É vital passar os dedos no recipiente após a lavagem e checar o se atrito entre as duas partes provoca uma espécie de resistência. Se der uma travadinha, está limpo, se não, lave outra vez.

O ideal, talvez, seja algo do tipo new journalism ou jornalismo literário. Misturar ficção e realidade numa trama complexa, dar nuances ao que está escrito secamente nos jornais, isso sim arrepia um leitor. Nesse quesito, Truman Capote tem meu respeito, ou José Hamilton Ribeiro, para dar um exemplo canarinho.

Panelas necessitam de uma breve avaliação anterior à lavagem. Nada de anormal constatado, pode mandar bala. Dessa vez com a esponja de aço, esfrego primeiro dentro e depois o lado de fora. A espuma, inevitavelmente, fica escura, pois o aço é muito fino e se desfaz, misturando-se com ela. Quando enferrujada, a espuma é marrom.

Aliás, escrever notícias todos os dias para um jornal deve matar qualquer escritor. Por isso alguns escritores escrevem para jornais. Para diferenciar das matérias cotidianas e refrescar o espirito de quem consume aquele conteúdo.

Copos sempre por último. Impossível, pra mim, lavar copos que não estejam com um dedo de água dentro dele. Aqui, admito, gasto muito detergente. Aperto o frasco do produto jogando-o um pouco dentro de cada copo. Esfrego o fundo, as laterais internas, as bordas e a parte externa, rigorosamente nessa ordem. Enxáguo todos de uma vez.

Na verdade posso estar completamente errado. Certo grau de objetividade garante o entendimento de uma narrativa. O importante é encontrar o meio termo. É isso. Poderia tentar encontrar o meio termo.

Louça limpa significa pia suja. Passo um pano nas laterais da pia e mando os dejetos remanescentes ralo abaixo. Levo o escorredor para a mesa da cozinha, tomo uma água e guardo tudo depois de descansar. Minha coluna dói um pouco.