Vida Nova

Minha mãe sempre me ajuda a fazer as malas, um hábito necessário durante a infância, mas que não faria mais sentido agora que sou adulta. Fazer as malas do filho é uma das cláusulas pétreas do contrato tácito da maternidade. Está entre a amamentação e a escolha da roupa que vai usar durante o dia. Dessa vez está sendo especial, percebo que ela dobra minhas camisetas com saudade nos olhos.

As malas não são para uma viagem qualquer - estou indo embora para Rio de Janeiro. Sou de Mato Grosso do Sul e conheci o homem da minha vida em um bar da Lapa há um ano, durante as férias. Médico do exército, bonito, educado, inteligente, Rafa me tomou por completa.

Já namorei outras duas vezes nesses 27 anos de vida, inclusive fui até a fase do noivado com um deles, o primeiro. Era meu namorado desde adolescência, chegamos à encruzilhada do “casa ou separa”. Decidi casar. Desisti no primeiro mês de compromisso, não foi fácil, mas ele não era o homem da minha, igual ao Rafa.

Depois me relacionei com o Thiago. Nos conhecemos na academia, o que diz muito sobre a natureza da nossa relação, majoritariamente carnal. Durou menos de um ano. Boas transas, conversas esporádicas sobre assuntos de interesse mútuo, mas ficava nisso. Novamente a sentença do término foi proferida por mim, sem muito drama.

Com o Rafa foi avassalador. Conhecia o Rio pela primeira vez, sem pretensões amorosas, a não ser beijos na balada, no máximo sexo casual. Uma amiga, também médica do exército e que trabalha com Rafa, era minha anfitriã e nos apresentou naquela tarde de sábado. Na mesa do bar, com afinidade em vários assuntos já rolou a primeira cantada dele. À noite também saímos juntos, no mesmo dia nos beijamos, troca de afeto que se estendeu pelo resto da viagem.

Dali três dias voltava pra casa com uma mistura estranha de sentimentos. Completamente apaixonada, mas sem saber qual seria nosso futuro. Ele me mandou uma mensagem logo que aterrissei em Campo Grande, isso me deixou eufórica. Continuamos a conversar todos os dias. Voltei mais duas vezes ao Rio. Ele veio outras duas para Campo Grande. Começamos a namorar.

Todos os nossos encontros foram perfeitos. Aproveitamos cada segundo juntos. Fomos a lugares turísticos de cada estado. Percebi, em dado momento, que nosso contato corporal era quase uma regra quando estávamos no mesmo ambiente. De mãos dadas, abraçados ou apenas com os pés entrelaçados, temos que nos tocar, é um amor siamês.

Não disse ainda, mas sou jornalista. Amo minha profissão, vivo dela – ou vivia. Moro com meus pais e duas irmãs por opção, nossa família é bem unida. Antes de conhecer o Rafa não tinha perspectiva alguma de mudar-me. Meu cargo e meu salário são ótimos, tendo em vista o mercado local. Desbravar a mesma trilha em outros estados não me apetecia.

O convite veio na última visita do Rafa. Ele disse que não era fácil namorar a distância, que estava sozinho no Rio e sabia que o amor da vida dele morava em outro lugar (Rafa não é natural do Rio). Também ponderou que tinha um bom salário e que podia me ajudar enquanto procurasse um novo emprego. Por fim, me pediu em casamento. Achei muito a cara dele me pedir em casamento depois de dar essa volta.

Claro que aceitei o casamento, nosso amor é gigante. Quanto à mudança, pedi um tempo para me organizar. Em casa todos me deram apoio, mas no fundo sei que lamentaram, diferente disso não seria amor.

Depois das malas prontas, colocadas no carro, estamos aeroporto. A despedida é emocionante. Família e amigos me desejando boa sorte. Lágrimas descabidas, já que o Rio fica a uma hora de avião. Pelo menos é o que digo para todos, mesmo sabendo a relevância da minha decisão.

Agora, no voo, fico relembrando nossa breve história, minha e do Rafa. Foi o ano mais intenso da minha vida. Estou dando uma guinada completa num futuro que já imaginava enxergar no horizonte. Penso em todas nossas conversas, o jeito como ele me olha, seu sorriso. Penso também na cidade do Rio de Janeiro. Um lugar lindo pra se viver, criar os filhos. Tenho certeza de que estou fazendo a coisa certa. Dou um sorriso feliz pela constatação antes de pegar uma bala de caramelo.

Estou ansiosa esperando as malas na esteira. Quero saber como ele me espera. Será que com um buquê de flores? Também decidi que vou sair correndo de encontro a ele. Vamos sorrir e, provavelmente, chorar juntos, prontos para uma nova vida.

Surpreendeu-me o fato da minha amiga - a que nos apresentou - estar na frente do portão de desembarque. Ela estava com uma feição séria. Cheguei a pensar que era uma coincidência, procurei rapidamente o Rafa. Logo ela veio até mim, chorando.

- Amiga, aconteceu uma coisa horrível. O Rafa sofreu um acidente grave durante um treinamento de rotina e, eu não sei como te dizer isso, mas ele morreu. Uma tragédia.

Gritando, eu sabia. Tudo tinha acabado antes mesmo de começar.