Dançando noite a fora

“Pois toda felicidade não é mais, talvez, que felicidade de expressão. ”

Michel Foucault

Estava sentada na carroceria aberta da caminhonete com as pernas balançando e ouvindo Don’t stop the music. Chacoalhava a cabeça no ritmo do som. Os olhos semiabertos e o busto pequeno e vibrando ao som de Rihanna. Cinquenta metros à frente um aglomerado de gente, gestos e odores a que se chama festa. Esticou o corpo para trás e deitou. Ficou olhando o céu noturno com suas estrelas bailarinas.

A tia-mãe havia dito: nunca confie em ninguém que não saiba dançar. A garota acolheu essa frase como se fosse uma verdade. Mais tarde descobriu que talvez se possa confiar em quem não saiba, mas deveria estar de sobreaviso contra quem não gosta de dançar. Aprendeu também que se deve desconfiar de algumas verdades. Até daquelas que saem da boca de quem amamos. Levantou-se rapidamente e sacudiu as verdades junto com a preguiça para longe. Era hora de dançar.

Aproximou-se devagar e parou na entrada do salão campestre. O som da vaneira bailou nos ouvidos. Olhou ao redor e viu os mesmos rostos. Engraçado, refletiu a garota. Isso acontece na cidade grande também. As pessoas são muito parecidas, principalmente os festeiros. Eles têm um jeito de andar, de falar que é próprio deles. Então, deu mais dois passos e já estava batendo com o salto da bota no chão. Tinha vindo dançar, se fosse para analisar pessoas teria ficado em casa com o Freud nas mãos.

A festa estava muito boa. Dava pra sentir pelo calor que aquecia o salão. Grupos de jovens abraçados em um canto. Do outro lado, homens de meia idade com suas latas de cervejas. Mulheres e homens casados esquentavam as cadeiras, mal contendo a vontade de se juntar aos seus respectivos iguais solteiros. Do lado de fora, crianças quase-adolescentes ingeriam sorrateiramente bebida alcoólica em latinhas de coca-cola. Solitários fumavam recostados no muro lateral. Alguns minutos depois o DJ fez a pergunta que não quer calar: Quem aí está feliz?

-Eu estou, eu estou!!!

-Quem está a fim de dançar comigo, levante a mão!

Ninguém respondeu a essa última provocação. Ela foi feita pelo cara mais desprestigiado do lugar. Bibo, era como todos o chamavam e apesar de ter uma aparência agradável, as pessoas da cidade não apreciavam o seu modo delicado de ser e sua opção sexual.

-Ei pessoal, quem se atreveria a fazer um passo de dança como esse?

Ele dançava com o corpo todo e flexionava os membros superiores como se fossem de borracha. Deslizava lentamente em círculos e em seguida estendia os braços e girava, girava como se estivesse em transe. Era a coreografia de quem sabe que está sendo observado. Movendo-se como um peixe na correnteza aproximou-se da garota. Deu-lhe a mão que ela pegou diligentemente. Assim que colaram os corpos, esqueceram-se de tudo. Menos da música. A vaneira virou xote que virou forró que virou alegria. Deram vários rodopios pelo salão. Perceberam pelo suor que era hora de parar. Ele a olhava de perto.

-Tem autorização para sair, menina?

-Não, mas tenho idade para isso!

E saíram sorrindo abraçados. Riam de tudo e de todos e gargalhavam gostosamente deles mesmos. Diante da barraca das bebidas destiladas, pararam e apreciaram os litros coloridos e a variedade etílica. Estavam embriagados de si mesmos, por isso compraram duas garrafas de água e saíram bebericando em direção à caminhonete.

Sentaram-se lado a lado e olhavam para a festa que continuava independente deles. A moça ligou o som e ficou olhando para o rapaz. Ele deu uma ombrada nela. Ela retribuiu. Ficaram sorrindo baixinho. Se achegaram mais para perto. Sentiram o calor do corpo um do outro e, lá dentro, no íntimo de cada um, gostaram disso. Estavam felizes, ou aparentavam estar felizes. Mas, o rapaz de vez em quando suspirava pesadamente. Ela pulou da carroceria e ficou diante dele.

-Quer voltar para o recinto?

-Não, agora não.

Ele pulou da carroceria para a grama empoeirada e a abraçou pela cintura. Seu all-star e as botas dela se tocaram bico com ponta. As mãos descansavam nas cinturas. Assim, lentamente, despreocupadamente começaram a se mexer. Partículas de poeira se elevavam na noite junto com o som de Rihanna.

make
Enviado por make em 23/12/2018
Reeditado em 23/12/2018
Código do texto: T6534003
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