Conto das terças-feiras – A forrozeira incansável

Gilberto Carvalho Pereira, 25 de dezembro de 2018

Nos idos de 1950-60 havia na Rua João Cordeiro, entre as ruas Fiúza de Pontes e Pinto Madeira, uma casa de dança, conhecida popularmente de “rala bucho”, especializada em forró. O nome forró, uma dança típica do Nordeste brasileiro, teria vindo da expressão inglesa “for all”, muito usada em convites para festas promovidas por militares que trabalhavam na base aérea instalada pelos norte-americanos em Natal, Rio Grande do Norte, durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje sabe-se que isso não passa de lenda. O termo é simplesmente a forma reduzida de forrobodó, existente no português desde o século 19, de significado também festivo.

Depois desta explicação, vamos à história da forrozeira incansável.

A jovem Quinea morava da casa dos Gondim Pereira e exercia o ofício de empregada doméstica. Jovem, de corpo quase perfeito e molejo gracioso no andar, era aficionada na dança do forró. Todas as quartas, sextas, sábados e domingos tomava banho com sabonete Cashmere Bouquet e se perfumava com lavanda da mesma marca, início de um ritual mágico. Usava um batom carmim, colocava o seu melhor vestido, ela tinha quatro, um para cada dia de dança. Às vinte horas em ponto saia saltitante, alegre e faceira para o forró. Dançava até as 24 horas, sem parar. As pessoas de casa questionavam se ela não se cansava e a resposta era sempre negativa.

Assim, ela passava na vida. Trabalhando duro pelo dia e dançando à noite. Certo dia tudo teve que se ajustar a outro modo de vida. Ela percebeu tardiamente, na inocência de quase criança, 17 anos, que estava grávida. Foi um reboliço na casa dos Gondim Pereira. Dos filhos, o pai logo desconfiou, a Quinea só saia de casa para dançar, era a observação que o patrão e a patroa faziam. Os filhos, de pronto negaram, não havia relacionamento nenhum entre eles e ela. Portanto, a criança que viria a nascer deveria ter sido gerada no intervalo ou saída do forró. Enfrentada, a moça confessou – era de um rapaz que sempre dançava com ela. Com a conversa de que a mãe queria conhecê-la, ele a levou para a sua casa. Não havia mãe nenhuma, o convencimento foi fatal, ela caiu como um patinho nessa armadilha.

Na casa dos patrões trabalhou até a última semana antes do parto, trabalhos leves, não podia se cansar. Teve o filho e deixou-o sob a guarda da mãe, uma senhora já velha e cansada. Mesmo assim ela deu conta do recado. A filha voltou para a casa dos patrões depois de dois meses de resguardo. Prometeu que aquele fato não se repetiria. Na segunda semana de trabalho voltou à vida noturna, isto é, a frequentar o “rala bucho”. Procurou o pai de seu filho e ficou sabendo que ele nem mais morava na cidade. Ela dançou a noite toda, mas sempre com um sorriso triste. Fechou os olhos e se deixou levar pela batida compassada da zabumba, do som do triângulo e do choro da sanfona, tocando Luiz Gonzaga, Marinês, Ary Lobo, Jacinto Silva, Luiz Wanderley, Sebastião do Rojão e outros. O coração da moça batia forte, sentia muita saudade de seu “partner”. A cada rodada no salão olhava para a porta de entrada, esperando vê-lo entrar a qualquer momento.

Na sexta-feira ela voltou ao forró e encontrou uma pessoa muito parecida com o seu ex, só que muito mais velho. Dançou a noite inteira com ele, o perfume era o mesmo, o jeito de dançar idem, o sorriso idêntico, só podia ser ele, pensava Quinea. Talvez tenha ficado doente e envelhecido, está desmemoriado. Ela queria acreditar nisso, mas, ao mesmo tempo, sabia que isso seria impossível. Havia passado poucos anos do sumiço do companheiro.

No sábado, mais esperançosa, retornou ao “rala bucho”. Não dançou de início, ficou bem próxima à porta, esperando que o senhor da sexta-feira aparecesse, queria repetir a dança, sentir novamente o cheiro dele. Seu sorriso se fez mais alegre, o senhor apareceu e dançaram a noite toda, isto é, até a última tocada. Novamente um convite para ir até a casa do desconhecido. Lá fizeram amor, um amor pensando no outro. Nove meses depois ela deu à luz um outro menino, a cara do primeiro. Depois do resguardo a dançarina procurou o senhor idoso, já não tão desconhecido, descobrindo que ele era pai do primeiro amor. Então, os filhos dos dois homens são irmãos por parte de mãe. O senhor mais velho, avô do primeiro filho de Quinea e pai do segundo. Consequentemente, o filho do primeiro, neto do senhor idoso. Quinea, mulher do senhor idoso, ex do primeiro amor e madrasta deste. Uma história que confundiu a cabeça da moça para o resto de sua vida.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 25/12/2018
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