O tiro

A noite era fria. O ônibus, o último. A maioria das pessoas se reconheciam. Umas vinham do trabalho, outras da escola ou da faculdade. Havia um engravatado com uma bíblia, cara de poucos amigos, de paletó surrado, que dizia ser da Igreja de Jesus Redentor e Salvador. Alienado de tudo, livro sagrado aberto, parecia sorrir. Levantava a cabeça, balbuciava palavras incompreensíveis e, segundos depois, mergulhava outra vez nos escritos do antigo testamento. Como sei o que ele estava lendo? Não sei, mas imagino.

Logo à frente do pastor —vamos chamá-lo assim —, duas garotas conversavam, gargalhavam, falavam ao mesmo tempo. Os assuntos eram todos e não guardavam uma ordem linear. Eram capazes de ficar em silêncio por um instante para retomar com vitalidade os assuntos anteriores e pautar outros novos no instante seguinte. Não traziam livros ou cadernos. Embora concentradas uma na outra, reparavam em tudo o que acontecia ao redor. De cabelos levemente desgrenhados, olhos cansados, roupas comuns, elas só podiam ser funcionárias do comércio.

Ao lado do motorista, sempre de frente para os passageiros e de costas para o para-brisas do veículo, havia um policial. Há, pelo menos, dois anos era um assíduo companheiro de viagem deste grupo dessemelhante do último horário. A primeira vez que entrou no Ouro Negro, era esguio, barbudo, desleixado, desatento, de ombros caídos. A caserna foi aos poucos corrompendo suas estruturas, robotizando-o, tornando-o ensimesmado, rijo e desalmado. A farda e a arma o deixava mais imponente… e desconfiado. O que não dá para negar é que sua presença deixava o ambiente com aquela sensação de segurança capaz de tranquilizar a todos.

O policial e o pastor tinham algo em comum. Consideravam-se diferentes, de outro mundo, muito melhores que os demais mortais. A semelhança parava por aí. Cultuavam diferentes deidades. Flertavam com a morte, diversamente.

Com vários assentos vazios, Douglas ia trocando de lugares. Conversava com um e com outro, sucessivamente. Era um sujeito solícito e carismático. Sabia da história da maioria dos passageiros e estes conheciam a sua. Fazia questão de contá-la e recontá-la, repetidas vezes. Em suma, era um alcoólatra em recuperação. Sempre portava mais de um livro. Um romance e algum livro de Bill Wilson, fundador dos Alcoólicos Anônimos. Seu maior prazer era estimular um bom debate que poderia durar dias a fio. Seu desencanto, que falassem mal do Corinthians, clube do coração. Apesar dos livros, não era estudante. Não, do ponto de vista formal. Era um autodidata e observador meticuloso.

O motorista era bipolar. Na mesma noite em que era todo sorriso podia se irritar profundamente com algum passageiro a ponto de o expulsar do “seu carro”. Sempre estava de ray-ban falso, pendurado no bolso da camisa ou descansando nos cabelos grisalhos.

Insosso, o cobrador era daqueles que acordavam e dormiam sem pensar no outro dia. Achava que a vida era assim mesmo, com afortunados e desgraçados. Nada o comovia, nada o animava. Sem sonhos, era um zumbi, um morto-vivo. Um sujeito incapaz de explicar qualquer atitude própria, que age por vingança, sem se dar conta disso. Vingança contra a sociedade que o exclui e que o impede de viver aquela vida de galã de novela das oito, de carro importado, cercado por mulheres, agraciadas nas formas, mas não necessariamente no conteúdo, em ilhas paradisíacas, em iates e Johnnie Walkers a la vontê.

A vida era muito injusta. Douglas diria que “Ao desconcerto do mundo”, de Camões, era o resumo da ópera para explicar a leseira do cobrador. Talvez lhe faltasse um pouco de Nietzsche, bem interpretado.

O fato é que a tranquilidade da viagem, naquela noite, estava prestes a ser rompida. Daqui a pouco, todos os passageiros tornar-se-iam vítimas de um assalto atrapalhado, à mão armada.

O meliante entrou no ônibus e parou entre o cobrador, o motorista e o policial. Douglas percebeu o que estaria por vir e tratou de ficar quieto, bem pertinho do pastor que não piscava os olhos, concentrado nos Provérbios. O ladrão olhou para todos para ver se havia algum conhecido antes de anunciar o assalto. A um passo e de costas para o policial, se dirigiu ao cobrador e pediu todo o dinheiro disponível. O que se viu e ouviu a seguir foi uma sequência de eventos descontrolados. Um tiro, que ensurdeceu a todos. Gritos, perseguição, uma correria louca no lado de fora e a volta do policial ao ônibus.

— Vamos, vamos —ordenou ao motorista. Cravejado de perguntas, o policial tranquilizou a todos. Não havia mortos ou feridos. Estava tudo bem, disse com ar aflito e perceptivelmente abalado com toda a situação.

Douglas, no entanto, tinha sua própria versão. Ele viu quando o policial, sem farda nesta noite, afastou-se devagar, ficou na ponta dos pés, se ajeitou para ficar, à distância de um braço, e disparou contra o assaltante. Era impossível errar o tiro. A essa altura o bandido já devia estar morto, pensava.

Mas a manchete local da segunda-feira surpreendeu os passageiros do último “busão”, com dois faltantes, o policial e o pastor:

Músico da Igreja de Jesus Redentor e Salvador é atingido por bala perdida quando retornava do trabalho. O projétil atravessou a boca do jovem que será submetido a uma cirurgia para recuperação de cordas vocais avariadas, dizia o jornal.