Mania de rico, frenesi de pobre

Moro no Rio de Janeiro há 29 anos e há 4 trabalho na zona sul. Me despenco de Bangu para lá correndo atrás do tal sucesso que eles tanto falam. Não odeio meu trabalho, mas tem muita coisa que eu preferia fazer em vez de limpar a casa dos outros. Aquela gente que não sabe a diferença entre um desinfetante e um sabão de côco.

Conto a eles sobre a vida na favela, no morro, sendo pobre. Conto sobre o dia-a-dia castigado, e os colegas da zona sul me olham com pena. Não entendem que não é por isso que eu conto; não conto pra ouvir consolo.

E a conversa fica mais ou menos assim:

- Oi Rosi, tudo bem?

- Tudo. E você?

- Eu tô bem. Mas pelo jeito, você não! Por que seu rosto tá assim?

- Vim de ônibus e o sol... você sabe...

- Nossa, coitada! Não sei como você aguenta. Senta um pouco, toma uma água.

- Não precisa, tá tudo bem. Começo o serviço daqui a pouco.

- Mas ônibus essa hora é impossível mesmo. Que dureza!

- É... tô acostumada.

- Ah, pelo menos hoje é sexta né! Hahaha.

- É, e segunda começa de novo.

- Oi?

- Eu disse que o trabalho dignifica o povo.

- Ah, sim.

E é assim que eu passo o expediente, todo santo dia. Ouvindo perguntas, respondendo com calma, segurando a vontade de socar umas bocas que falam amenidades, esperando falarem o “coitada” pra depois eu dizer que tá tudo ok. Veja bem: Isso depois do calor, da sujeira da rua, das pessoas que não respeitam seu espaço no transporte público, das que até tentam, mas não conseguem, porque o espaço que tem não é suficiente para todos ali. Fico me perguntando se o nome disso é azar ou pobreza... Decido que é a combinação dos dois.

No caminho de volta, procuro um lugar pra sentar no ônibus. O motorista é um conhecido, me reconhece quando entro. O cobrador é meu vizinho, sempre guarda um lugar pra eu sentar perto da catraca. Gentilezas minúsculas do tipo que a gente se acostuma e aprende a ignorar, infelizmente. O cansaço parece uma redoma, quase palpável, denso. Todos, de algum jeito, se olham e se entendem.

Antigamente eu ria dessas coisas, hoje eu quase não presto atenção – Não tenho tempo pra isso. Mulher não pode cair na lábia, mulher tem que impor respeito, se impor. Mulher tem que ser isso, tem que ser aquilo. Que canseira disso tudo. Se tem um ponto positivo nessa vida encalacrada de perrengues desmedidos, eu não sei.

Minha saga começa no nascimento. Fico pensando no porquê de eu não nascer preta se meu pai é preto, poxa... genética eu tenho. O que aconteceu na barriga da minha mãe? Uma vez, caí na besteira de dizer isso a um dos coleguinhas da zona sul.

- Era pra eu ter nascido preta, sabia? Meu pai é preto.

- Tu queria ser negra?

- Sim, genética eu tenho...

- Pensa bem, Rosi. Negro sofre demais! Se eu fosse negro, acho que não aguentaria tanto preconceito o tempo todo. Acho que já teria me jogado na frente de um trem.

Para, pensa... Respira.

- Eu queria te jogar na frente do trem.

- Oi? Não entendi.

- Disse que seria horrível se você se caísse na frente do trem.

- Ah, sim, verdade. Ainda bem que sou pardo.

Aline San
Enviado por Aline San em 06/01/2019
Reeditado em 09/04/2020
Código do texto: T6544441
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