Vinho Roto

Ela sentara em frente ao espelho e o que viu foi apenas a constatação do que, há muito, não queria acreditar: rugas, fios brancos alvejando-lhe a cabeça, olhos fundos e envoltos em lágrimas, que caíam pesadas.

O passado era o motivo do pesar, os causos que a vida lhe reservou.

No espelho do quarto havia uma imagem que não era triste, mas saudosista. Lembrou do marido, que partira. Não, caro leitor, ele não morreu, apenas a deixou. Dizem que o coração de um homem é inconstante. Pois bem, assim fez aquele que a jurara amor eterno. Conheceu uma jovem, no Teatro Municipal, dada às danças, que fez com que seu amor, antes férvido, arrefecesse. Findaram por partir, não só por um caminho sem planos, mas também o coração daquela que se dilacerava de “por quês” diante do espelho.

Ligou o rádio e deixou que o som apascentador de uma marcha lenta invadisse-lhe a alma e a tomasse de um rápido esquecimento. No entanto, voltou a pensar. Agora sim, já não era mais saudade e sim uma dor rija que a rasgava meticulosamente. Lembrou do filho que partira há muito. Não! Ele também não morreu. O filho único casara muito cedo e se foi. Não mais apareceu; quando muito telefonava e perguntava como ela estava, se precisava de remédios, tudo muito mecânico. A conversa esmorecia como se houvesse dois desconhecidos nos lados opostos da linha, que os deixava tão próximos e tão distantes.

Levantou-se. Dirigiu-se à janela e decidiu por fechar completamente as cortinas. As tênues faixas de sol, que ainda entravam no quarto, incomodavam-na, queria o quarto um pouco mais escuro. Agora era quase trevas e nada mais. O real fica mais escondido no escuro; na verdade, apenas não o vemos.

Completou a taça com o vinho do Porto e o vermelho que ela enxergava, o vermelho que se derramava na sua frente, mexia muito com suas idéias.

Em seguida, tocava uma música que exaltava o passado, o cruel passado que marcou a vida dessa mulher como uma cicatriz vistosa e revoltante. A navalha já se encontrava em suas mãos, pensou bem; na verdade pensou mal e deu o último gole na taça companheira.

Vinho e sangue, lágrimas, suor e a navalha nos pulsos. A vista escurecendo. Ela olhou para o relógio, três horas da tarde. A hora mística da morte. Só não sabia se teria a ressurreição, na verdade nem sabia se merecia. Suspirou um suspiro tonto e inebriado em meio ao vinho e a dor, e ouviu, pela última vez: “...Oh! I believe in yesterday.”