Encarcerados

Sofia estava sentada num banquinho perto da porta da cozinha quando ouviu um estrondo assustador. Olhou bem para todos os lados da casa e percebeu uma claridade excessiva na sala de entrada. Era Lúcio, seu filho único que chegara, mais uma vez, tomado pelo descontrole que a droga lhe propiciava, derrubou a porta da entrada gritando com vigor. Rapidamente, Sofia o abraçou e recebeu uma forte pancada no rosto. Quis sentir raiva, mas preferiu se render ao instinto materno e, em meio às lágrimas, tentou acalmá-lo, tentou mostrar-se como a força que ele poderia ter nesses momentos tão degradantes. Em vão foi essa tentativa. Lúcio arremessava contra a parede tudo o que encontrava pela frente, até que, subitamente, desmaiou por sobre a mesa da sala. Sofia colocou-o numa cama.

Depois de um intervalo de tempo considerável, Lúcio se acordou e começou a chorar compulsivamente. Sua mãe quis se aproximar, mas achou melhor esperar que ele a procurasse e lhe contasse o que havia acontecido. Porém, a atitude de Lúcio foi a de uma criança tomada por um medo enorme, encolhido na cama ele chamava pela mãe com uma voz gutural, como quem se escondia, como quem queria os braços da mãe pra se sentir seguro.

Sofia o indagou sobre o que havia acontecido, mas ele só olhava para ela com uma feição de medo, com a testa franzida e os olhos tomados por lágrimas silenciosas. Não soluçava, não exprimia dor, somente atonicidade, perplexidade, e assim que se viu perto de sua mãe, abraçou-a com força e começou a chorar um choro descompassado, envolto em soluços. Ele foi pego pelos ombros e perguntado pelo motivo de todo aquele alvoroço, e o que Sofia ouviu foi o suficiente para levá-la ao chão, desmaiada. Ele só a olhou cair por sobre a cama estreita, pegou-a pelos braços e a ajeitou no leito.

- Lúcio, meu filho, o que aconteceu para que você chegasse tão transtornado? Já te pedi para se afastar desses seus amigos, você sabe o quanto a droga que eles te oferecem faz mal. – Rogou Sofia com uma fala tenra e preocupada.

Mãe, eu... Eu entendo tudo isso que você me fala, mas é mais forte do que eu... E...e...eu não consigo dizer não, e se eles não me aceitarem? – Lúcio falou com um agitar de mãos nervoso. – Eu não sei como foi que eu fiz uma besteira dessas, e quanto isso vai me custar caro! – Desabafou com uma incoerência muito grande.

- Mas eu te aceito, meu filho, você sempre vai ser meu Lucinho, sempre. E que besteira é essa que você falou que fez? – Sofia perguntou com o coração palpitante, como se algo de muito ruim tivesse acontecido.

- Mãe, hoje, depois da pelada, nós fomos para um boteco pertinho do campo e... – nesse instante, Lúcio parou de falar porque uma rajada de vômito fluiu intensamente, sujando o quarto. Recompôs-se e continuou falando.

- Argh! Minha garganta tá ardendo. Sim, quando a gente chegou no bar, os meninos me ofereceram uma pedrinha de crack e eu não resisti. Depois que fumei, eu bebi cerveja e a sensação que eu tive foi de que minha cabeça tava grande – Nesse instante, Lúcio riu largamente, mas logo parou e retomou um choro penoso.

- Aí, mãe, tinha um cara na outra mesa, que nem tava olhando pra mim, mas eu marquei o carinha e disse pra galera que eu ia ensinar o caminho do céu pro primeiro malandro que atravessasse meu caminho. Levantei e fui na mesa do sujeito, demorou muito não e ele me empurrou, não pensei duas vezes, parti pra cima dele com muita vontade, e ele me dizendo que quem ia conhecer o caminho da morte era eu, senti medo, mas não dava mais pra voltar atrás, o que é que iam pensar de mim? Mãe, fiquei muito raivoso, e peguei uma faca que tava na minha mesa...matei o rapaz, foi muito feio...eu, logo eu, matei um inocente!

Foi esse o motivo do desmaio de Sofia. Seu filho se tornara um assassino, seu filho único, que havia perdido o pai quando ainda era muito novo, matara um homem, tudo isso foi o suficiente para que ela perdesse o resto de força que ainda possuía.

Ao recobrar o ânimo, o choro que Sofia manifestou não poderia ser explicado nem mesmo por ela, caso fosse indagada. Uma mescla de raiva, tristeza, medo, frustração... Enfim, não saberia o que iria acontecer com o filho.

- Lúcio, sinto muito pelas minhas falhas em sua criação, mas eu não merecia uma dor tão grande como essa que estou sentindo agora. Desde o seu jeito de falar, até o de vestir, tudo mudou, e tudo isso por causa dessas más companhias que acabam com a vida de uma pessoa! Mas pode ter uma certeza: eu vou ter que te entregar à polícia...

Lúcio saltou da cadeira que colocara de frente para sua mãe e pôs as mãos na cabeça num gesto de total desespero.

- A senhora não pode fazer isso comigo! Onde está o amor de mãe que você sempre me prometeu? – Lúcio fez essa pergunta no intuito de testar a decisão da mãe.

- Talvez devesse ter morrido junto com a vida que você acabou de tirar! – Os dois começaram a chorar tomados por um desespero atormentador.

- Meu filho, exatamente porque eu te amo é que eu vou te entregar. Preciso que você pague pelo seu erro, e você também precisa reparar tamanha falta. – Sofia sentou na cama e fitou o chão longamente, não conseguia mais chorar. Tornou a falar, lentamente: - mesmo ficando esse tempo todo longe de você, eu vou saber que fiz meu papel de mãe, eu te ajudei, mesmo que você não reconheça.

No dia seguinte, a polícia chegou à casa de Sofia e levou Lúcio para o Distrito Policial. A dor que alcançava o profundo do ser de Sofia é lastimável, e ela o olha com compaixão, com uma piedade materna, quase irracional. Ele, porém, prefere sair de cabeça baixa, sem se despedir de sua mãe, não se sabe se o que passou pela cabeça dele nesses instantes, se foi raiva, se foi melancolia, ou se foi um entendimento verdadeiro do que estava acontecendo.

Alguns anos depois, Lúcio saiu da cadeia e voltou para casa. Sofia o esperava com uma alegria incomensurável, com uma feição serena.

- Talvez eu devesse chorar agora, meu filho. Mas esse momento não é para as lágrimas, e sim para um belo sorriso e para um abraço forte.

Os dois se abraçaram longamente, e tamanha foi a emoção que as lágrimas, esses fragmentos teimosos, verteram com a liberdade do bico da pena diante de uma folha em branco, soltos e leves.

- Mãe, eu nuca vou conseguir te agradecer por ter me ensinado a ser o que realmente sou. Nesses anos todos de cadeia, aprendi que a vida é muito curta pra ser vivida mal, e mais curta ainda quando nós decidimos vivê-la mal. Hoje eu vejo o quanto eu sou fraco, e eu posso te dizer mais uma coisinha: não quero mais me importar com o que vão pensar de mim. Quero viver intensamente o que eu deixei passar e, por causa disso, eu perdi. Meu olhar não será mais triste, meu falar não será mais sofrido e o meu viver, isso eu te garanto, será espelhado em meu pai, um homem forte que sempre trabalhou por nós e teve a vida abreviada em tão desgraçado acidente. Quero ser tua ajuda, mãe. – Lúcio segurou as mãos de Sofia e chorou junto, e beijou-a como quem beija uma rara aparição divina.

- Chore, meu anjo, e prove da felicidade que é viver com o coração livre para o amor e a mente aberta para o bem. Te amo com uma força que eu nem sei e te agradeço por hoje ser um espelho do homem que eu só amei nessa vida...te amo, Lúcio Filho.

Os dois foram ao túmulo do jovem assassinado e depositaram flores, e fizeram uma prece desinteressada, mas com a vontade de mostrar ao mundo que um erro só é realmente um erro quando se foge da solução.

O pôr-do-sol avisava que mais um dia arrefecia, mas era diferente, pois a vontade de ser melhor, a ânsia de mudar fluía forte e alumiava todo o horizonte incerto do filho tornado pródigo não por escolha, mas por necessidade.

Marcelo Viana
Enviado por Marcelo Viana em 16/09/2007
Reeditado em 19/09/2007
Código do texto: T654692