Tragédia Anunciada

Tragédia Anunciada

Quando a polícia chegou à Rua das Laranjas, numa madrugada estranhamente gelada de verão, Laura tinha certeza que alguém havia morrido na casa de frente à sua.

Saiu do quarto com cuidado, como se o perigo pudesse adentrar a casa. Sua avó, Dona Marina, estava sentada no sofá rezando. As mãos ossudas da senhora seguravam com força o terço que ganhara do falecido marido quase cinquenta anos atrás, como um presente de aniversario de namoro. O olhar da senhora denunciava a tragédia a qual a neta tanto esperava que não acontecesse.

- Laura, senta aqui no sofá. Vamos rezar que nada de grave tenha acontecido.

As duas deram as mãos e, em uníssono, fizeram suas preces. Tudo que Laura pedia era um milagre divino, no qual Rafael e a mãe Giselda saíssem ilesos.

“Tomara que aquele maldito seja preso de vez”. Laura repetia o pedido, torcendo para que cada uma das vezes ganhasse mais força.

De tudo havia naquela prece da adolescente. Desde esperança por um futuro melhor para o garoto e um resquício de ódio pelo pai dele.

Marina e a neta, enfim, finalizaram as preces quando outras sirenes fizeram-se ser ouvidas pela vizinhança. Ignorando o temor, as duas saíram para assistir a chegada da ambulância e de um carro da policia civil, no qual exibia na janela traseira, os escritos que ninguém naquela rua queria ler: “Instituto Médico Legal”

- Pai Todo-Poderoso. – Dona Marina O evocou, angustiada.

Laura não conseguia falar. Tanto ela falou, tanto avisou e ninguém a ouviu. É claro que podia ter feito algo, mas, talvez Rafael estivesse certo. Não adiantaria, pois protegeriam o pai dele.

Assistiram a cena atônitas. Primeiro, quatro homens carregaram o corpo para fora da casa. Em seguida, dois policiais saíram, exibindo o rosto duro e irritado. No meio deles, exibindo nenhum traço de resistência ou revolta, Rafael era conduzido algemado. Giselda tentava alcançar o filho, enquanto era contida pelos paramédicos que vieram ao resgate.

- Laura, meu Deus. O que o garoto fez? – Sua avó indagava, num misto de surpresa e desespero.

Ela não sabia. Somente sabia que seu coração estava tão apertado que a garota não tinha forças nem para chorar.

A rua toda cochichava o acontecido, chocada pela brutalidade. Laura e Marina foram as únicas que mantiveram contato com a viúva. Por quase uma semana, Giselda limitava-se a agradecer pelos esforços das duas vizinhas. Parecia um fantasma extremamente apático.

- Laura, o que essa mulher passou foi um verdadeiro pesadelo. – A avó comentou.

A garota assentia, preocupada. Os únicos momentos em que a mãe de Rafael saiu de casa foram para o velório do esposo e para visitar o filho preso. Em casa, Giselda lia a Bíblia procurando alguma espécie de conforto para o que passou.

De férias da escola, Laura se dedicava às pesquisas para ajudar Rafael. Não acreditava nos buchichos da rua, os quais diziam que o garoto matou o pai a sangue frio, num assomo de maldade repentino. Ela o conhecia bem demais. Era um doce. Fez o que fez para proteger a mãe e a si mesmo.

Ainda assim, a dúvida tomava folgadamente o espaço da certeza. E se as vozes da rua tivessem razão? Teria seu amigo premeditado aquilo tudo? Era consenso de todos que Rafael já tinha a força necessária para se equivaler ao pai. Bastava esperar o momento certo.

Afinal, seria Rafael tão culpado assim? Mesmo com essa desconfiança à cerca do tal do dolo? Laura se encontrava cada vez mais envolvida no dilema ético. De fora, assim como ela pensou um dia, era fácil ver outras opções. Não podia deixar de pensar que o amigo não estava totalmente errado.

Depois de quase um mês depois do ocorrido, Laura arrumou coragem para pedir à Giselda a permissão para visitar Rafael.

- Tem problema não. Você vai ter que pedir uma autorização para sua avó.

Marina sabia da proximidade da sua neta com o garoto. Aceitou, sabendo que fazia algo que jamais passou em sua cabeça. Assinar uma permissão para a garota visitar um Centro de Detenção de Menores infratores. A única condição era que Laura não iria sozinha.

- Um lugar desses não é um lugar para se ir sozinha, principalmente sendo uma garota direita.

No dia combinado, Laura recebeu a mensagem de Giselda. Ela não poderia ir porque havia surgido um problema. Normalmente, não incentivaria jovem algum a bater de frente com os desejos dos seus responsáveis. Entretanto, dessa vez, era um caso especial. A exceção do caso motivou a viúva a abrir uma concessão:

- Mas, Laura, sei que sua avó não quer que você vá sozinha, só que você poderia ir assim mesmo? Não gosto de imaginar o Rafael esperando e ninguém indo.

Motivada pela explicação de Giselda e por toda aquela sorte de sentimentos que nutria por Rafael, Laura pegou o ônibus, ansiosa pelo que lhe esperava.

O tempo parecia se arrastar, de forma que a garota se perdeu em suas memórias. Tudo contribuía para aquela onda de relembrança com pitadas amargas de nostalgia. Desde a simples janela suja, a qual serviu de apoio para cabeças de milhares de usuários, ao sentimento de incômodo de alguém que não sabe o que enfrentará.

Os dois se conheceram na época em que Laura foi morar com a vó, na Rua das Laranjas. Tímida e de prontidão, ela esperava ansiosamente o momento em que alguma bola quicaria para dentro do quintal. Então, saía correndo de sua guarda para jogar de volta a pelota e, então, voltaria para seu posto.

Até que um dia, um dos garotos falou:

- Oi, você não quer brincar?

Laura olhou para a Dona Marina, que sentava no sofá, lendo suas revistinhas de maquiagem. A senhora ergueu a vista e rendeu-se ao brilho raro o qual surgiu no olhar castanho da garota.

- Pode, Laura. Mas quero você em casa assim que eu aparecer na porta, me ouviu? E nada de sair para outras ruas.

A então recém órfã entrou na tradicional queimada, brincadeira na qual sempre foi muito boa. Do seu time, era ela e mais dois garotos os quais ainda não havia aprendido os nomes. O time adversário resumia-se em apenas ao garoto da voz; Rafael. Era veloz, alto e um tanto magrela.

Ele desviava com facilidade das boladas. E isso irritava, pouco a pouco, Laura. Era como se a bola não quisesse encostar nele. Eventualmente, Rafael foi eliminando os companheiros da recém-chegada. No 1 a 1, Laura era presa fácil. Uma bola na perna da garota selou a vitória de Rafael.

Cordialmente, ele ofereceu sua mão para a garota, se apresentando

De brincadeira em brincadeira, os dois foram se conhecendo. Nas raras vezes que os meninos a permitiam jogar futebol, Rafael sempre dava um jeito de jogar com ela. E, magicamente, sempre driblava o time inteiro para, no final, presentear Laura com um passe para um gol vazio.

Era Laura e Rafael para tudo que era lado. Na escola, nas brincadeiras e nas festas da rua. Tinha um buchicho que diziam que era um casal. Bem que ela queria. Gostava do jeito mais maduro dele. Não era um cara que somente pensava em garotas e futebol. Era até irônico, na cabeça dela.

Ele jogava muita bola. Embora não fosse fã de futebol , Laura acompanhava o amigo. O pai dele o levava para jogar num torneio amador de várzea. Com torcida e tudo. Rafael sempre entrava com o time perdendo e garantia, num dia ruim, um empate bastante amargo. Passava com bastante facilidade dos adversários. Ela achava fantástico aquilo. Vislumbrava, com certo temor, um olheiro de um time grande aparecer, se encantar com ele e o levar para a Europa.

Numa tarde, enquanto retornavam do Colégio Estadual Leonel Brizola,

Laura perguntou o que ele faria se um olheiro aparecesse.

- Nem sei, Lau-Lau. Acho que não iria.

- Por quê?! - O tom de Laura evidenciava a surpresa. Seria verdade o que acabara de ouvir?

- Não gosto tanto de futebol. É algo que sou bom e tal, mas não sonho em ser jogador. Jogo muito mais pelo papai.

- Como assim?

- Meu pai meio que me obriga a jogar. Ele diz que é coisa de homem, sabe?

- Isso é ridículo! Mas, como ele te obriga?

Geralmente, Rafael conseguia esconder muito bem aquele sentimento de chateação. Adotou o lema do pai por não conhecer outra opção: “Homens que demonstram o que sentem são os primeiros a se ferrarem no mundo!” dizia o sargento da Polícia Militar Haroldo. Entretanto, o filho sabia que, a cada dia que passava, ficava mais difícil manter a aparente tranqüilidade perto da Laura. Sentia tanta confiança nela que era difícil esconder algo dela. Mas, ainda assim, dava um jeito.

- Então, futebol não é exatamente um lazer para mim. É como se fosse uma obrigação, assim como ir à escola, entende? E se eu não jogar muito bem, fico de castigo. Não posso ir para a rua brincar, ou não ganho mesada e tal.

Laura achava aquilo irônico demais para ser verdade. Mas, por causa da frustração que o seu amigo não conseguia esconder, acreditou que aquela obrigação era uma verdade irônica.

Nos três anos seguintes, Laura foi notando as turbulências da relação do amigo com o pai. Não só ela notava, como a rua toda. Quase toda semana tinha uma briga nova na casa do Rafael. A voz grossa e arrastada de Haroldo proferindo xingamentos e ofensas gratuitas eram pesadas de se acompanhar. A neta de Dona Marina notou que, quanto mais tarde e consequentemente mais bêbado chegava em casa, a tendência era de uma briga mais espetacular que a anterior.

Bem que Rafael tentava disfarçar, no dia seguinte, que estava tudo bem. Para Laura, ele apenas relatava o que acontecia. Dava para ver o quão abalado o garoto ficava. Apertava os dedos e os pulsos, numa tentativa de se livrar da raiva adicionada ao medo. Segurava as lágrimas, mostrando a evidente dor que sentia.

- Da próxima vez, vai lá em casa, Rafa.

- Não sei se isso vai dar...

- Rafa, não se preocupe, sim? Só apareça lá em casa, por favor!

O coração de Laura acelera com a simples recordação do primeiro dia que Rafa apareceu. Sabia que sua avó não aceitaria com facilidade. Quer dizer, seria impensável a remota possibilidade. Por isso, fizeram na surdina. O garoto entraria pela janela do quarto da Dona Marina, enquanto ela ia distrair a senhora.

Jamais havia feito algo como aquilo. Laura entrou no seu quarto, torcendo para que Rafa tivesse saído do cômodo de sua avó. Quando abriu o armário, seu rosto se iluminou ao ver o garoto encolhido entre as roupas dela.

- Nossa, que sabão vocês usam? É um ótimo cheiro.

- Sai daqui, seu pervertido.

- Tô brincando.

Naquela noite que Laura guardou com muito carinho na sua memória, resolveram assistir o filme favorito dela no próprio quarto, no DVD que ela retirou da sala de estar. Acabou que cochilou nos ombros dele, totalmente enroscada no corpo dele. Quando acordou no dia seguinte, um bilhete jazia dobrado ao meio em cima da escrivaninha dela.

“Lau-Lau, saí um pouco antes do meu pai acordar, tudo bem? Desculpa, você sabe que por mim eu ficaria até você acordar. Obrigado pela noite.”

Fizeram isso por varias noites, até que numa bela ocasião, ouviram a costumeira briga. Rafael, dessa vez, não saiu soturnamente. Dona Marina viu o rapaz saindo do quarto da neta. Laura seguiu ele, ignorando completamente a avó. Deteve-se no meio da rua, enquanto o amigo batia a porta. Giselda abriu, tentando esconder os machucados.

No dia seguinte, os amigos tiveram uma daquelas discussões feias. Laura queria que Rafa fizesse a denúncia.

- Lau, não é como se fossem aceitar. – Respondeu num misto de ironia e amargor.

- É o dever deles.

- Papai é um deles, Laura. E um dos condecorados. Falta beijarem o piso aonde ele pisa. Sem contar que já denunciaram. Ele coagiu minha tia a retirar o BO.

Laura sentiu-se mal, mesmo tendo passado quase dois anos do acontecido. Não sabia o que teria acontecido naquela noite se Rafael estivesse na casa. Principalmente, porque o garoto havia mudado bastante desde o incidente. A maturidade da via adulta o atingiu com todas as forças.

Como se preparasse para um dia no qual precisaria de uma defesa, Rafael entrou num curso de lutas. Era um dos mais esforçados. Continuava magro, é verdade, mas muita gente percebeu que Rafa havia deixado o corpo de moleque para trás. Aos olhos de sua amiga, cada vez mais se tornava parecido fisicamente com o pai.

- Preciso ficar forte para defender minha mãe. – O amigo dizia para Laura.

Ela sabia muito bem que não adiantaria convencer o garoto sobre denunciar. Tinha tantas condições que entendia o lado de Rafael. De fato, aparentemente, ninguém que vivesse na Rua das Laranjas acreditava no sofrimento de Giselda e do filho. Viam uma mulher manipuladora e sonsa o suficiente para colocar o filho contra o pai. Pelo número de pessoas no enterro de Haroldo, todos acreditavam na imagem de bom policial e, consequentemente, bom pai e bom marido. Alguns lamentavam o azar dele:

- O filho pirou. Só isso explica esse ataque. – Um colega do falecido comentou, em alto e bom som, para que Giselda sentisse a culpa.

Laura constatou, um mês antes da morte, que aquilo era uma tragédia anunciada. Estava cansada de ouvir a frase ”Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Os vizinhos lamentavam a situação, esperando uma intervenção divina. A garota cansou de esperar.

Resolveu tomar uma atitude. Com o seu celular e um tanto escondida das vistas das janelas da casa de Rafael, ela filmou uma das brigas. No dia seguinte, sem avisar o amigo, foi à delegacia da mulher. Prestou a queixa, com muita dificuldade.

A esperança de ter mudado a situação de Giselda e Rafael acabou em dois dias. Haroldo apareceu na frente de sua casa, com um sorriso calmo e debochado de quem sofreu um ataque de uma barata.

- Oi, Laura. Queria te mostrar uma coisa.

Ergueu o BO, mostrando claramente que a tentativa da garota não surgiu o efeito esperado. O policial rasgou o papel com uma facilidade absurda.

- Não se meta nas coisas que acontecem na minha casa, garotinha.

Foi embora, deixando Laura pasma, encarando as costas daquele homem cruel.

O ponto no qual a garota desceria finalmente chegou, despertando ela das memórias. Caminhou até o Centro de Menores Infratores ouvindo o barulho de pedras e poeiras anunciando suas passadas.

Passou por todo aquele processo que viu na Internet. Filas, revistas e a eterna espera pela sua vez. Quando finalmente foi permitida sua entrada, respirou fundo antes de entrar no pátio em que as visitas encontravam os reclusos.

Rafael estava sentado num dos banquinhos, cabisbaixo, tamborilando os dedos na mesa de concreto. Laura congelou umas três vezes até chegar próxima dele. Não sabia o que falar, nem como interagir. Era como se ambos estivessem presos em universos completamente diferentes.

Timidamente, sentou diante dele. Colocou sua mão em cima da dele, interrompendo o tamborilar dos dedos. Rafa ergueu o olhar, surpreso pela presença dela.

Conversaram como se ainda estivessem na Rua das Laranjas. É verdade, não estavam. A voz embargada de ambos juntos com as lagrimas tímidas que escorria lentamente pelas bochechas mostravam o quão longe estavam daquela juventude.

Não falaram sobre o ocorrido. Aos olhos de Laura, Rafa havia feito apenas o que qualquer filho desesperado faria no lugar dele. Não era um ser ruim. Continuava a ser o garoto mais difícil de ser queimado em toda a Rua das Laranjas, quiçá, do mundo.

Ao segurar a mão de Lau, lamentava. Não por ter matado o pai com as quatro facadas. Por isso, jamais lamentaria. Era daquilo que sentia falta. Segurar a mão macia e reconfortante de Laura era o que o acalmava.

Ali, teria aquele contato uma vez por fim de semana. Se fosse para o regime fechado, como era esperado, apenas uma vez por mês.

Tentou afastar o pensamento, porém, talvez fosse para o melhor aquilo. Pelo que seus parentes diziam para Rafael antes de tudo aquilo acontecer, até mesmo seus pais já foram felizes. Preferia ir para a prisão por ter matado Haroldo do que ir para a prisão por ser Haroldo.

Givago Thimoti
Enviado por Givago Thimoti em 12/01/2019
Reeditado em 12/01/2019
Código do texto: T6549264
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