Crônica ao Teco

Crônica ao Teco

Nunca entendi por que as pessoas morrem. Quando meu pai ficou doente, quase surtei, enlouqueci, não entendi ou não quis assimilar, aceitar. Enfim ver meu velho querido naquela cama inerte, me deu medo, pânico. Ele sempre fora meu porto seguro, a certeza que mesmo na pior das situações, eu o encontraria sentado na sua cadeira na frente da casa discutindo com a minha mãe, implicando com alguém ou mexendo nas suas couves. E a vida continuaria normal, pois estava tudo no seu devido lugar. Nunca achei que ele morreria, nem ao menos cogitava a hipótese remota da sua ida para outro lugar.

Doeu muito. Contudo, o Teco (meu pai tinha o apelido de Teco) ficou muito doente e como todo sonhador não aceitou. Sempre fora um bicho livre, homem criado em campo aberto, acreditava na dignidade, na honra e principalmente na liberdade de ir e vir, porém a doença lhe deu marras, o prendeu, e isso ele nunca suportou. Mas sua bondade o fazia melhor, não gostava de incomodar, sentia-se humilhado quando tinha que pedir alguma coisa. Magoava o afastamento de alguns filhos, no entanto, jamais reclamou, até mesmo arrumava justificativas para esses filhos e os amava da mesma maneira democrática, pois distribuía amor da mesma maneira para todos.

Naquela quarta-feira que não era de cinzas, mas poderia ser, pois era o inicio do fim. Meu pai entrou em coma. Ficou inerte, parado, não falou mais, não sorriu mais. Somente respirava. Eu também fiquei parada, estática, só sabia chorar. Conceber o fim do Teco era como aceitar a morte. Ela que nunca havia batido na minha porta, isso dilacerava meu corpo e minha alma. Independente do meu não querer, meu pai entrou em coma profunda, não havia volta. Estava morrendo aos poucos, como se ele fosse se despedindo delicadamente para não nos fazer sofrer. Sua família sempre fora seu amor maior, até nessa hora extrema, mostrou sua bondade e delicadeza.

Então numa sexta-feira que não era santa, mas poderia ser, o Teco virou uma estrela. Foi brilhar em outro lugar, como eu disse para meus filhos, contudo para mim foi o começo de uma vida adulta em que não haveria mais ninguém para chamar de pai, paeeeee, não, não existia mais ninguém para chamar. Agora estava órfã, aos quarenta e poucos anos, eu descobri uma dor que talvez muitas crianças e adolescentes já haviam sentido. E eu não conhecia.

Na sexta-feira, tinha sol, um dia lindo de inverno, como aqueles da minha infância em que sentávamos em frente a nossa casa para comer bergamota com meu pai. Ainda hoje sinto o cheiro daqueles dias. Só não tenho mais tua presença ao meu lado. Na nossa varanda ficou uma vaga permanente na tua cadeira. Então aconteceu aquela última despedida que adiei a vida inteira.Tudo ficou lento, não sentia minhas pernas, minhas mãos, nem minha alma. Resolvi todas as coisas práticas, levei meus filhos para escola, liguei para uma colega me substituir, deixei uma aula organizada.

Senti-me oca, vazia. Parecia que havia toda a vaguidão do mar dentro de mim. Quando ele chegou, a dor se instalou intensa, dolorida. Era o fim. O teco tinha ido embora.Durante toda o dia permaneci te olhando como se pudesse gravar teu rosto.Olhava intensamente. Sentia-me uma criança que precisava sair da sala, pois tinha “uma faz de conta” dentro de mim me ajudando amortecer a dor. Havia pessoas, eu conversava, ria, contudo não lembro de uma palavra que disse naquele dia. Sabia não existiria mais volta no término daquele dia. Tu irias e pronto. Eu teria que entender, aceitar e crescer. Então o dia findou e com ele foi meu pai estrelar em outro universo.

Isa Piedras-04/04/2004