A ARMA

No dia seguinte ao decreto presidencial, José Gusmão foi logo cedo comprar sua arma. Fã de Bruce Willis, Chuck Norris e demais heróis da Tela Quente, José admirava sobretudo o modo de vida americano. Um homem não podia ser totalmente um homem sem uma arma, era sua firme convicção.

E agora o sonho acalentado durante tanto tempo estava prestes a se realizar. Agora José poderia de fato zelar pela segurança da casa e garantir a integridade física e moral de sua família.

Não que nunca antes tivesse surgido a oportunidade de obter uma arma por meios ilegais. Mas o Zé Gusmão era um homem de princípios, seguidor fiel das leis de Deus e dos homens. Jeitinho brasileiro não era com ele, não.

Tanto que semanas antes do decreto ser assinado ele já estava com a papelada toda em dia, inclusive o laudo psicológico que o considerava são o suficiente para ser o feliz proprietário de uma arma de fogo. Depois de alguma deliberação, José optou por uma pistola semiautomática, que o vendedor garantiu que seria o grande sucesso da temporada, por ser fácil de manusear e limpar e, principalmente, pelo seu alto poder de letalidade. Acabou saindo bem mais cara do que o previsto, mas é para essas coisas que existe o cartão de crédito.

José só ficou um pouco triste porque teria de adiar por alguns meses o plano de ter aulas e ingressar em um clube de tiro, o que só seria possível depois de pagar a última prestação. Mas no caminho de casa, sentindo o peso e o volume de sua nova posse, já recuperou a boa disposição inicial. Sentia-se o próprio Jason Bourne.

E mais orgulhoso ainda ficou diante dos olhares de admiração da esposa e do filho. É claro que os dois não tiveram autorização de tocar na arma: puderam apenas contemplá-la com reverência a uma distância segura. José decidiu guardar a pistola na gaveta de cima do criado-mudo, do seu lado da cama. Assim estaria ao alcance da mão durante a noite, quando os justos dormem e os malfeitores são mais ativos.

De tanta excitação, nessa primeira noite ele não pregou o olho. Qualquer pequeno barulho na rua o fazia estremecer de antecipação, com os ouvidos estalando de tão tesos, à espera do ruído delator que indicaria sem sombra de dúvida a invasão de um bandido em sua residência.

De olhos abertos na escuridão, enquanto aguardava a inevitável hora da verdade, imaginava com infinitas variações a cena do confronto: ele saltando para a gaveta do criado-mudo e sendo alvejado em pleno salto, ou então conseguindo sacar e atirar primeiro, acertando em cheio o ladrão, ou então acertando de raspão ou na parede, dando a oportunidade do facínora revidar, fulminando-o com um disparo certeiro, ou então errando o tiro ou acertando na esposa que dormia ao seu lado, levando-o a se vingar do criminoso com uma rajada mortífera, ou então a ficar frustrado com a pistola que engasgava, possibilitando ao celerado fugir tranquilamente, depois de matar toda a família.

De manhã, estava um caco. No trabalho teve uma magra satisfação ao comentar, como quem não quer nada, de sua aquisição. Mas arrependeu-se de ter aberto a boca quase que imediatamente: logo todos no trabalho ficariam sabendo de sua arma, e sabe-se lá com quem iriam comentar. Uma pistola como a sua, além de garantir a segurança da casa, era em si um bem precioso, que valia bastante dinheiro. E se alguém quisesse roubar?

Na rua, novas preocupações o assaltaram. Qualquer um com uma pochete ou mesmo uma camisa folgada poderia estar carregando uma arma. José Gusmão, cidadão exemplar, jamais iria desrespeitar a nova lei, que lhe facultava a posse, mas não o porte de arma. Mas quem lhe garantia que os outros seriam igualmente respeitadores? Sua pistola, mesmo custando tão caro, podia ser parcelada em até vinte e quatro vezes. Assim qualquer um podia comprar. Na avaliação de José, quase todos que passavam por ele podiam estar portando. De que lhe adiantaria sua pistola trancada dentro de casa, se ele se visse envolvido em um tiroteio em plena rua?

Nessa noite novamente não conseguiu dormir. Travou centenas de duelos imaginários, na expectativa do segundo fatal. Amaldiçoou cada gato vagabundo, cada motorista ou pedestre notívago, cada avião roncando seu motor no céu distante e principalmente os diversos pequenos sons indistintos da madrugada, que não lhe permitiam conciliar o sono.

Levantou na manhã seguinte embrutecido e mal humorado, e mais ainda ficou quando, ao sair do banho, flagrou o filho em seu quarto, com a gaveta do criado-mudo aberta, bulindo na arma. Bateu no moleque até dizer chega. Por conta disso chegou atrasado no trabalho. O patrão olhou de cara feia.

Ao voltar para casa passou a andar com os olhos no chão, para evitar que seu olhar cruzasse com o de algum estranho armado. Mas ficou o tempo todo vigiando as movimentações suspeitas com o canto dos olhos.

Temeroso de que a surra não tivesse bastado, teve que guardar a pistola em cima do armário, fora do alcance da curiosidade do menino. O problema é que assim a arma ficou inacessível também para ele. Nos devaneios dessa noite, precisou incluir elaborados estratagemas para conseguir ludibriar um invasor até que fosse possível subir na cama e esticar o braço para pegar a arma em cima do armário, para somente então passar para a cena do tiroteio, com todas as suas milimétricas variações. José afinal adormeceu, de pura exaustão, mas teve pesadelos medonhos.

O dia e a noite seguintes não foram muito melhores, nem os demais. Depois de algumas semanas a esposa, preocupadíssima, aproveitou a desculpa de um feriadão para convencer José a irem passar o fim de semana prolongado na casa de praia de um parente. O marido aceitou muito a contragosto: custou a se despedir da arma, mesmo que só por alguns dias.

Ao voltarem do feriadão, tiveram a triste surpresa de encontrar o portão arrombado. José correu para dentro de casa, oprimido por um pressentimento irresistível: a pistola não estava mais sobre o armário. Aliás, não havia mais armário.

Por sorte não levaram também a cama. Nessa noite, em sua casa dilapidada e com as trancas ainda por consertar, pela primeira vez em muito tempo José Gusmão dormiu em paz, como um bebê.

Fabio Shiva
Enviado por Fabio Shiva em 24/01/2019
Código do texto: T6558483
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