Joca olhando Gilberto e balançando o rabo

Joca olhando Gilberto e balançando o rabo

Histórias de sertanejo, lembram as de pescador, por seus exageros, mas esta é verdade.

Aconteceu lá pras bandas de São Pedro, interior do Paraná. Cidade de homens bravos, valentes, daqueles que de madruga para matar pernilongo, usam a cartucheira. Um rancho no meio do mato, com as janelas sempre abertas, porta sem trancar. Aquilo é uma tranquilidade só. Tem o ribeirão ao fundo, com suas belas árvores. É um paraíso particular. À noite é tranquila, cuidado só com a onça, mas os cachorros acoam, antes da “bicha” chegar perto. De dia é mais sossegado, tem o quero quero, o alarme do sertanejo, ave que faz um barulho daqueles, nem cobra passa despercebida. Se começar a ouvir “quero quero, quero quero”, pode ter certeza, tem alguém chegando.

Neste ranchinho, com um luar de tirar o fôlego, ao lado do córrego Pedra Grande, mora um sertanejo. De pouco luxo, todo supérfluo é um freezer. Sempre recheado de carnes, tem capivara, cateto, paca, galinha só se for caipira claro. No mais, os móveis são uma cama, mesa com duas cadeiras, caso chegasse visitas tinha um sofá. Além claro, de uns pratos, garfos, colheres, facas e panelas; de barro. Completava o essencial, fogão caipira, balcão e a geladeira amarrada na porta, guarda roupas, era dinheiro mal investido. Banheiro com chuveiro de água aquecida no fogão. Sempre dizia; - mais que isso solteiro não precisa.

O muro dava os contornos do terreno. Dentro deste, morava Seo Tião e doze cachorros. Aqui entendesse o porquê das portas e janelas abertas. Ninguém fazia questão de entrar.

Numa tarde dessas, lá pelas tantas, Seo Tião ouviu o quero quero, de longe avistou um conhecido. Pensou, esse bicho nunca perde nada. Era sexta feira, lua cheia, próprio para uma pescaria com o amigo.

Bas tarde – disse Seo Tonho, vizinho de cerca.

Bas tarde – respondeu Seo Tião.

Já sabiam o que precisavam fazer, antes de começar a diversão. Ao menos uma vez no mês tiravam um tempo para isto, era um passatempo gostoso. Sem muito falatório, cada um foi fazer suas tarefas. Seo Tonho foi apanhar minhocas e arrumar as tralhas de pesca. Tião foi terminar de reunir o gado e deixar perto do rio e das arvores.

Deu umas seis da tarde, tudo arrumado, pegaram a cachaça de alambique e tomaram rumo ao poço dos bagres.

No caminho seo Tonho disse; - meu sobrinho Gilberto vem pescar também.

- Tudo bem, disse seo Tião.

Chegaram ao poço dos bagres e tudo foi como esperado, duas horas depois, dois peixes e mais dois; litros de pinga. Entretanto, isto não importava: os peixes; o que valia eram os “causos”.

E Seo Tonho começou; - pois é, nessas horas a gente vê como é feliz, aqui nóis só tem coisa boa, e o “pessoar” da cidade, só se atrapaia no mato. Não esqueço daquela “veiz”, que veio seus parentes aqui, e fomos caçar na cachoeira. Coitado do seu sobrinho. Entrou no mato, viu uma capivara, acertou e foi pegar. Achou ela meio “pestiada”, a coitada tava com sarna, era puro micuim, “se danou”, ficou três dias tomando banho. Aquilo coça de sair sangue.

Seo Tião não poderia ficar para trás. - Pois é verdade, mas ri muito também do seu primo, aquele que queria levar uma iguana para casa. E eu mostrei um calango, coitado, dois dias depois ele ainda correndo para todo lado, subia, descia e nada, depois de muito suador desistiu. Pior foi quando ele contou para você e explicou pra ele aqui não existe iguana, só tem calango. Iguana não corre e calango ninguém pega. Arrematou, - fez até tocaia e nada. E riam muito. Eita vidão dos deuses esta.

Mesmo repetindo todos estes e outros “causos“, às sextas feiras de lua cheia, era este o passatempo preferido dos sertanejos, pescar.

Bem, a noite mal começava e as garrafas de pinga, os encorajou a dar uns tiros. Havia uma espera de paca por perto e resolveram caçar. Todavia, já altos de cachaça, sem noção do barulho, só fizeram espantar os bichos.

Enquanto isto no rancho, Gilberto chegou e foi arrumar suas coisas. Sabia que os cachorros eram bravos e não confiava neles. Então, sempre daquele jeito, um olho no gato e outro no peixe. Como as tralhas estavam dentro do lote, foi pelos fundos, costeando o rio, deste modo ele poderia entrar, era alagado e os cachorros não passam. Depois subiria no muro, entraria em uma casinha onde ficavam as tralhas de pesca (esta ficava fechada por ter gasolina). E fez este caminho, evitaria os cachorros.

Sendo assim, Gilberto subiu no muro e caminhou até a casinha, os cães por ali rosnando e avançando, mas a altura não oferecia perigo. Entrou, pegou o que precisava e os cachorros não paravam de latir. Porém, Gilberto num acesso de raiva, deu com o cabo de vassoura na cabeça de um deles, os outros se revoltaram e avançavam, sem sucesso, a porta era de madeira boa. Pegou o que precisava e começou a fazer o caminho de volta para sair.

O cachorro que levou o cabo de vassoura na cabeça era o mais nervoso. Parecia dizer, eu quero você. Tomava uma distância, corria , pulava no muro e nada. E Gilberto ria, isto pareceu deixar o cachorro mais bravo. Joca era o nome do cão. Ele saiu correndo e tomou rumo por trás da casa, Gilberto nem deu bola, sabia que o portão estava trancado, continuou andando, ao chegar ao fim do muro, quando foi pular, viu Joca esperando Gilberto. Queria retribuir a vassourada. Nem se atreveu a sair, sabia que o cachorro iria atacar. E agora, o que fazer, se correr o bicho pega, se ficar ele come.

Resolveu ir até o portão, estava aberto, não foi fechada a tramela toda. Com um pulo Joca deve ter aberto fácil. Falando nele, só acompanhava Gilberto enquanto ele andava no muro. Os outros cachorros, ao verem o portão aberto, deram uma passeada. E Joca lá deitado, olhando fixo para ele, não tinha muito que fazer. Pensou, “essa desgraça de cachorro só tá esperando eu sair pra me pegar”.

Então resolveu ir à casinha e ver o que tinha lá. Entrou e os cachorros já começaram a pular na porta e rosnar forte. Não tinha nada interessante, um pouco de gasolina, algumas coisas para montaria, um facão, muitos ratos e mais nada. Ficar dentro era muito ruim, um cheiro forte. Não tinha condições.

Resolveu de novo dar uma volta. As possibilidades de entrar na casa, sem ser mordido, muito poucas. Teve uma ideia, pegar a bolsa de pescaria, que tinha umas carne para traíra, jogar e assim enganar Joca. Quando ele entrasse para comer, Gilberto fecharia o portão. E fez, jogou, Joca nem deu bola, já os outros cachorros brigaram pelos nacos. Joca tinha outro foco, ficou do lado de fora, olhando para ele e balançando o rabo. Parecia sorrir e dizer, “estou sem fome”.

Gilberto deu a volta na casa, sempre em cima do muro e não havia qualquer possibilidade de sucesso. Os cachorros são mais rápidos. Eles o seguiam sempre. E Joca nem precisava olhar, continuava quieto, sempre olhando para ele e balançando o rabo.

Já estava escurecendo e as muriçocas começaram a picar. Gilberto sem camisa e de bermudas, a coisa começou a ficar mais complicada. E na beira do rio, perto do alagado, era a casa delas, não podia ficar por lá. Caminhava e os cachorros latiam, Gilberto já cansado, queria ao menos sentar, mas caso parasse de andar, as muriçocas comiam ele vivo. As câimbras começaram, não podia nem agachar, se fizesse os cachorros alcançariam ele fácil.

E Joca balançando o rabo.

Olhou a casinha e resolveu entrar. Estava muito cansado, precisava descansar. Entrou e os cachorros de novo se jogavam na porta. Deu três minutos dentro da casinha, às muriçocas já haviam tirado meio litro de sangue. Saiu correndo, não dava para ficar ali. Olhou para o lado, Joca do mesmo jeito. No lado de dentro a mesma coisa, os cachorros esperavam ele descer.

Gilberto começou a ficar desesperado, não sabia mais o que fazer. Porém, algo chamou sua atenção, um relâmpago ao fundo. Era verão e as chuvas às vezes apareciam do nada. O vento denunciava que não iria demorar. Bom, ao menos as muriçocas iram sumir.

Em dez minutos a água desceu forte, gostosa, refrescante e o melhor, as muriçocas desapareceram.

A poucos quilômetros do riacho, Tião e Tonho precisavam tomar uma decisão, o que fazer? A água os pegou desprevenidos, correr para o rancho ou se embrenhar numa caverna ali perto? Sem muito tempo para pensar, pois a água vinha com força, optaram pelo mais seguro, entrar na caverna. E fizeram, mas não só eles fugiam da chuva, como também as muriçocas, tinha uma cascavel, mais no fundo corria uma paca, e mais alguns bichos.

Cheios de cachaça, ponderaram e acharam melhor sair, era só esperar a chuva diminuir e voltar para o rancho, se os catetos aparecerem, a coisa iria ficar feia. E a chuva nem ai com fraquejar, vinha com força. As muriçocas comendo eles vivos, mataram a cascavel. Mas sabiam, precisavam sair dali, cateto em bando espanta onça. E como não tinha como se defender dos bichos, muito menos para onde correr, saíram na chuva mesmo.

Precisariam fazer uma volta grande, pelo rio não tinha como ir e pelo mato poderiam encontrar os catetos. Então caminhariam até a estrada e depois num trecho seguro, chegariam ao rancho. Foi o quê fizeram.

O trajeto normal seria de uns três quilômetros, com a volta, foi para uns dez. O que poderia ser feito fácil em vinte, trinta minutos, levaria naquela chuva e barro, duas horas. Então, dependendo do passo, chegariam com o raiar do sol.

Porém, a região é quebrada, tem subidas e descidas. Isso complica a coisa, para cada passo para frente, dá outro para o lado, depois escorrega e começa tudo de novo. Não se pode esquecer as cachaças, deixa o labirinto confuso. Isso quer dizer, a caminhada inicial de dez quilômetros, tem tudo para ser o dobro.

Há um trecho da estrada, conhecido naquela bandas como “toca da onça”, só nome mesmo, a onça já não “tava lá”. Porém, o que chama a atenção deste trecho, é uma forte descida, e logo em seguida uma subida íngreme.

E seo Tião falou, - Tonho, cuidado, não vá cair aqui, que para tirar você dessa valeta, só arrastado. Mas não deu tempo de fechar a boca, seo Tonho resvalou numa pedra, deu uma balançada para um lado e outro e foi de ré. Deu de bunda no chão, escorreu e desceu o barranco gritando tudo quanto é nome ruim, por fim encontrou o fundo. Ficou um barro só. Nisso seo Tião deu uma passada no porre, olhou, não via muita coisa, estava escuro. E pediu como Seo Tonho “tava”, este nem pensou duas vezes, “seu fio duma rapariga, to todo cheio de barro, como é que você queria que eu estivesse”. Mas sabia o que o amigo queria perguntar e disse; - estou bem.

Sabendo disso, seo Tião pegou o embornal, sacou a pinga e disse; “vamu bebe por que você só sai daí a cavalo”. Dava uns três metros de altura, dois bêbados, sem corda, não tinham onde se agarrar, fazer o quê? Beber. E foi assim até às seis da manhã, quando o padre voltando para a paróquia, passou no local e ajudou os dois.

Depois de um tempo seo Tião falou; - seo Tonho, o vigário vinha da casa da luz vermeia eu acho. Cê viu que ele tava todo perfumado, sem camisa, e com umas cor “vremeia” no pescoço? No que seo Tonho respondeu; “isso ai não tem o que faze, é freguês de caderneta de Isaura, dona do cabaré”.

Por fim chegaram ao rancho, já era dia longe. Seo Tião viu o portão aberto, deu um assovio e os cachorros todos correram para receber Tião. Conheciam bem seo Tonho, foi àquela festa. Nesta hora, do outro lado do rancho, Gilberto saiu de cima do muro, correu para o banheiro, se limpar, tinha feito nas calças mesmo.

O Joca não tirou o “zóio” dele e foi assim à noite toda, com Gilberto em cima do muro.

Paulo Cesar Santos
Enviado por Paulo Cesar Santos em 15/02/2019
Reeditado em 17/02/2019
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