E A ALMA NASCEU KO LIXO

PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2004.

;;;E A ALMA NASCEU NO LIXO

Era uma vez num reino encantado...

Era para começar assim este conto, mas começará exatamente ao contrario.

Era uma vez, um vilarejo qualquer, as margens de um lixão, neste lugar miserável e triste que uma menina veio ao mundo, seu nome era Alma, pele macia, mas já maculada pelo vil submundo da sociedade voraz e cruel. Sua mãe, catadora de papel, mal falada e vagabunda, o seu pai, catador de papel embriagado e drogado;dois adolescentes, meninos de rua, sem eira e sem beira, sem família, sem passado(Todos o ser humano tem que ter um passado, seja bom ou seja ruim, o passado é a sua própria identidade), conheceram-se nas escuras vielas do lugar, e inconseqüentemente uniram-se e desta ligação mal concebida que Alma chegou a este mundo, hediondo e triste.

A menina foi crescendo naquele lugar, imundo e sem nada

De bom para oferecer, seu pai acabou morrendo baleado,

E sua mãe perdeu-se na prostituição das vielas da cidade...

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Alma foi crescendo de mão em mão, comendo restos dos outros, e quando tinham, tentando ser pura, nas nodoas da sociedade, ora numa instituição, e olha que até teve sorte, comparando com os pais, ora noutra, acabou conhecendo um adolescente, mesmo mundo dela, e foi assim igual a seus pais que se uniram, e foi assim que ela se tornou mulher.

Alma teve filhos,pequena evolução para melhor, mas seu mundinho continuava o mesmo, ela diarista, e ele biscateiro; sempre as mesmas pessoas a passarem por suas vidas vazias.

Os filhos foram crescendo, e um a um a se perderem nas vielas desconhecidas da vida, um morre baleado na frente de um bar qualquer, outro morre na prisão; a filha prostituta e drogada sai do lugar; no final os poucos que sobraram perdem-se no mundo; seu marido, carroceiro e catador, igual ao pai de Alma acaba conhecendo uma fulana igual a ele; vão embora, e novamente a mulher fica sozinha, nunca mais vai ter noticias do infeliz.

O tempo foi passado...Passando num tic tac monótono e letal, Alma vivendo de seus restos do passado, aos quarenta parecia ter sessenta, boa costureira a mulher afinal era, mas seu trabalho não passava de dois ou três trocados, uma bainha aqui, um fecho éclair trocado lá, um cerzido acolá, e assim ela foi levando sua vida de subsistência, vazia e sem amor, e sem sonhos também, pois nem sonhar mais a infeliz sabia.

E derepente chega o entardecer de sua existência; coitada da infeliz, viveu por nada e por nada foi embora da terra, e agora lá estava ela, alheia, enterrada num campo santo qualquer...

...E a Alma nasceu no lixo, saiu do pó sem nada, e ao pó retornou...

Esta estória é uma anti-fabula, que na percepção do autor,

Mostra a amarga realidade do Brasil,

Esta cruel desigualdade social que torna o sofrimento de seu povo,

Um sofrimento sem fim e sem esperança.

*JORGE LUIS BORGES