dia de outono

o frio gelado esfolava o rosto magro dela, fazendo o cabelo curto e negro balançar freneticamente em todas as direções. estava atrasada e irritada. começará o dia correndo e nem eram 7 da manhã ainda. parecia que ia chover e isso a incomodava. Maria, era esse o nome da jovem negra que aguardava o ônibus no meio do nada naquela segunda-feira gelada.

Maria havia completado seus 22 anos no dia anterior, cursava faculdade de letras na federal de santa catarina. mulher direita e sempre atarefada. trabalhando desde os 15 anos de idade. agora solteira, mas antes namorava Juliano. um cara da mecânica. 1 ano sem sentimento, nem sequer uma faísca de paixão.

a jovem achava que amor era coisa de gente rica com tempo de sobra. ou então coisa que só acontece em novela.

dentro do ônibus meio cheio Lara fitava o borrão que passava pela janela com os olhos inchados. tinha passado a noite em claro como sempre, a tal da procrastinação era seu ponto forte. o ônibus parou e a mochila escorregou pelas pernas grossas. Lara tinha corpo de mulher, olhos frios e calculistas que escondiam uma tremenda manteiga derretida. cabelos longos e desajeitados. naquele dia em especial usava seu moletom preto do steven universo. ela cursava matemática, era de fato um gênio. mas como sempre, prazos não se aplicavam a ela.

Maria entrou apressada no ônibus já caçando um lugar vago para se acomodar. tirou o dinheiro, aguardou o troco e escorregou caindo no banco. “desculpa.” pediu desajeitada para a garota que puxava a mochila do chão. “oxi, que isso. a mochila escorregou com a parada do ônibus”.

foi como se as coisas andassem em câmera lenta quando os olhos se encontraram. do tipo besta que acontece em novelas românticas e com gente rica que tem tempo pra romances. mas Maria não conseguia desviar o olhar. foi Lara que sorriu desajeitada e virou pra frente. Maria pensou que talvez fosse a pressa e o susto de quase cair que tinha causado tal sensação, seu corpo todo formigava. e as pernas encostadas pelo aperto do banco fazia o corpo aquecer ainda mais.

Maria saiu do ônibus um ponto antes de Lara. deixando a garota com cabelos desajeitados norteada com tal beleza.

aí temos um detalhe importante. Maria era hétero convicta, não do tipo que sentia atração por mulheres, ou pelo menos não considerava atração. Lara se considerava liberal. “sem rótulos” espalhava a todos os cantos.

algumas semanas se passaram, mas Maria não conseguia tirar a garota do ônibus da cabeça. tentou pegar novamente no mesmo horário, mas não teve sorte de encontrá-la novamente.

foi numa quinta-feira de chuva. e o mundo parecia desabar nos estudantes da universidade. Maria entrou correndo na biblioteca central. xingava a bipolaridade de florianópolis “fazia sol quando sai de casa” resmungava rápida. o cabelo pingava e a blusa rosa claro que antes era larga agora grudava em todo o corpo mostrando as curvas acentuadas do busto e da cintura. cruzou o salão até os armários. abriu o armário, tirou um livro, guardou a bolsa e fechou novamente o armário. passou apressada pela catraca ainda resmungando tentando ajeitar o livro e o caderno e o celular o carregador até que esbarrou com muita força na curva que levava para a rampa.

“a gente deveria parar de se encontrar com esbarrões e quedas” ela tinha uma voz suave, parecia veludo e dias de outono. Maria amava o outono. riu com vergonha juntando tudo que havia caído no chão. era Lara. e junto com ela veio as sensações no corpo da jovem estudante de letras. “pois é né” Lara apenas encarava fixamente nos olhos. claramente era um momento constrangedor para ambas.

“olha, eu acho que tu deverias tirar essa blusa e por uma seca. sabe como é, o ar daqui é bem gelado”

Maria não conseguiu captar nada do que a outra falava. a única coisa que habitava sua mente era “nossa que sorriso bonito. preto combina com o tom de pele dela. será que pergunto qual curso ela faz? meu deus, meu cabelo deve estar uma zona”

as vezes é difícil compreender os encontros da vida. Lara percebeu que ela não tinha entendido o que falava e disse que tinha uma blusa para emprestar. o tal moletom do steven universo. insistiu que Maria trocasse a blusa, até que ela cedeu e ambas caminharam até o banheiro.

de dentro do cubículo Maria pensava em coisas para perguntar, mas no fim Lara indagou “então, tu estudas aqui?”. Maria contou que estava no quinto semestre de letras, e que trabalhava em uma ótica no centro. “e você?” dessa vez a voz saiu mais suave, sem tanto medo. talvez estivesse derrubando os muros, e só tivesse ficado nervosa com os encontros turbulentos. “eu faço matemática” disse sem mais delongas “sim, nós existimos fora do labirinto”. ambas riram e passaram aquela tarde chuvosa compartilhando informações. hora sobre leituras. hora sobre trabalhos e como a faculdade é intensa.

quando saíram da biblioteca já tinha combinado algo, que não envolvessem esbarrões, quedas e afins.

um sorvete. Maria não pensou no quão clichê aquilo parecia.

o tempo se arrastava. dali surgiram mais 4 encontros. sorveteria. um dia comeram um bolo no meio do gramadão e outra vez na biblioteca, nesse dia Maria tinha prova e Lara segurou a mão dela pela primeira vez. jurava que não precisava ficar nervosa pois tudo ficaria bem. no quarto encontro ambas estavam sentadas no gramadão. o programa era não pensar em nada. o fim de semestre consumia tudo.

“nunca perguntei, mas qual é a tua cor preferida?” Maria questionou olhando no fundo dos olhos castanho claro de Lara. naquele ponto, para Maria, castanho claro já tinha se tornado sua cor preferida.

Lara não respondeu apenas continuou séria encarando-a nos olhos. e no meio daquele olhar a respiração de ambas foi gradualmente se tornando irregular e Maria já não compreendia nada. pensava em como podia sentir vontade de beijar a jovem com cabelos longos. pensou também que poderia ser apenas uma curiosidade, afinal todo mundo tem curiosidades sobre sua sexualidade um dia. não é?

mas era difícil demais compreender todo aquele misto. sentiu Lara mover levemente o corpo para frente. apressada disse que havia se lembrado de um detalhe qualquer, precisava entregar um papel para uma colega qualquer que fazia uma matéria qualquer de um curso qualquer da área de humanas. enquanto falava saia tropeçando e argumentando que ligaria mais tarde.

Maria não ligou. Lara não sabia se deveria ligar.

Lara lia um livro de física sobre matéria escura próximo à janela do quarto. era outono. e as folhas das árvores caiam. e o sol se alastrava pelo céu. mas a temperatura era muito agradável. ouviu batidas apressadas na porta do quarto e imaginou que fosse sua prima. a qual dividia a casa.

não era a prima que batia apressada na porta. era Maria. parecia ter passado no meio de um furacão. com o casaco colocado às pressas. usava um all star de cano longo. um deles tinha a barra da calça por dentro e o outro com a barra para fora. “uma total confusão” falou esperando uma resposta negativa de Lara, mas antes que a mesma pudesse pensar em responder colou os lábios nos dela.

ali sentiu todo o calor se alastrando pelo corpo. foi um beijo rápido e ao mesmo tempo calmo. os segundos pareceram uma eternidade.

“me desculpa” falou. e começou a se afastar. mas Lara a puxou pela cintura selando novamente os lábios.

era uma dia de outono. e foi ali naquele dia morno, num quarto quente que Maria compreendeu. romance não existe apenas em novelas ou para pessoas ricas que possuem tempo ocioso.

caroltell
Enviado por caroltell em 27/02/2019
Código do texto: T6585542
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.