DINDIN E OS NÚMEROS

Dindim nunca perdia a hora. A criança moradora do morro do Tumba precisava de quase duas horas para chegar a escola, isso nos dias considerados "normais". Quando havia "batida" da polícia no morro, a pobre criança precisava correr mais. A escola não esperava, e o governo não esperava. O prefeito construira aquela escola "modelo", mas distante do morro, no bairro da zona sul para demonstrá-la como um troféu na próxima eleição. A periferia, que nada, é que deveria se deslocar para alfaberizar os seus. A favela somente tinha a sua importância de quatro em quatro anos. Após a eleição, dizia o prefeito Tortotelo: -Estou ocupado. Uma pinturinha de muro de pobre valia uns quatro votos, e uma cesta básica, a família inteira. A família de Dindin recebia a visita do políticos a cada quatro anos. Até no copo da velha Voinha o deputado Mendonça já bebeu água mesmo ignorando os apelos da mãe de Dindin sobre a Tuberculose da velha. Mas Dindin sempre era consciente que aquilo era apenas um "teatro". Apesar dos seus 7 anos, o mulato amadurecera precocemente com as dificuldades. Ele precisava sempre fazer cálculos sobre os minutos que gastava para ir a escola, e também do número de goiabas para o seu lanche diário. A produção da fruta destinava grande parte para o sustento da família. Quando se retirava uma unidade do cesto de 30, a mãe de Dindin tinha que inflacionar as demais. Mas os fregueses do Mercado do Peixe eram muito exigentes, e vez por outra, o balaio voltava com a metade da produção. E aí quando isso acontecia, a mãe de Dindim fazia doce para o mulato vender à tarde na praia dos Canários aos gringos portenhos. A rotina daquela criança comecava às 05 da manhã. Ele acordava sozinho, fazia a sua higiene, e deixava as cuecas lavadas no varal. Depois tomava café e arrumava o material escolar que era apenas um caderno, doado pelo tio Quinca, e um lápis grafite. Quer dizer, não tão café assim. Um suco do "melhor" corante da mercearia do seu Kita substituia com "dignidade" o velho e bom café. O garoto cronometrava entre o despertar e a saida de casa exatamente meia hora. A caminhada a pé até o primeiro trem demorava um quarto de hora. Na plataforma da estação o garoto esperava mais 15 minutos para tomar o veículo mais rápido da região. A chegada ao bairro da luz demorava mais sessenta minutos. Dindin chegava a escola "Almirante Rodelo" junto com os raios solares mais lindos do lugar. Em seu caderno o mulato organizava todos os horários de suas matérias, e os exercícios, para não ter que sair tarde da escola. Os dias de provas eram mais festejados pelo garoto, pois saia cedo para curtir os desafios matemáticos dos velhinhos da praça 10 de maio. O jogo de xadrez atraia os olhares do mulato. Ele achava bonito as estratégias usadas por cada jogador e, de certa forma, orientava um ou outro velhinho para torná-lo vencedor. O futebol, preferido entre os garotos, não atraia a atenção de Dindin. Mas sim, os números estatisticos da partida. Ele calculava a velocidade de cada jogador para ultrapassar o seu adversário, e o número de chutes a gol. O garoto era sempre convidado a integrar algum time da escola, mas a sua falta de habilidade nos pés e mãos não o deixavam jogar mais do que 10 minutos. As ciências exatas atraiam os olhares do mulato. Os números pareciam amigos de longa data. O número 1, por exemplo, parecia, para o garoto, aquele tio magro que visitava a família todo fim de semana. O numeral 8 parecia aquela avó paterna que abracava os netinhos no dia da festa de "Cosme e Damião", e logicamente dava presentes. O 4 assemelhava-se à cadeira da tia Sebastiana que visitava os sobrinhos todos no Natal. Dindin colocava a cadeira de cabeça para baixo e imaginava o quanto aguentava aquela tia obesa. O dia era cronometrado por Dindin. As 24 horas eram repartidas em três planilhas. As primeiras horas destinavam a atividades escolares. As outras horas se limitavam a venda de doces, e claro o restante do dia/noite ao jogo de xadrez e ao sono. Certa vez o despertador natural de Dindin não funcionou "misteriosamente". O garoto, muito cansado das caminhadas na praia no dia anterior, não acordou a tempo para realizar todo o seu "ritual". O garoto muito chateado soubera dias depois que o seu "despertador" fora devorado no almoço da terça pelos vizinhos paupérrimos que se valeram da única ave restante do galinheiro. Agora ele tem que despertar sozinho pois agora os números são o seus melhores aliados para a sua aprovação na melhor escola profissionalizante da cidade. E agora, quem vai acordá-lo?. Talvez o choro do sobrinho que nascera na semana passada, fruto de um relacionamento entre a sua irmã mais velha (17 anos) e um presidiário. Mais um para aumentar os números daquela casa.

Levi Oliveira
Enviado por Levi Oliveira em 26/03/2019
Código do texto: T6607825
Classificação de conteúdo: seguro