Profundidade oceânica

Carol não entendia o porquê de tamanhas regras. “Não faça isso, não faça aquilo” dizia sempre sua mãe. Carol pensava que tinha chegado ao mundo para brincar nele, mas logo descobriu que o mundo já dizia o que ela deveria ser. E como Carol achava isso chato...

Era uma menina pequenina, de cabelos encaracolados, negra e com olhos pretinhos, mas profundos como ela. Andava saltitando por todos os lugares em que andava. Parecia que enquanto saltitava ganhava vida, e como queria vida essa pequena menina. Nunca entendeu as falas de sua mãe:

— Carol, por favor, pare de querer ser quem você não pode ser!

— Mas mãe, o que sou eu se não uma grande invenção de mim mesmo? - Sempre dizia ela. Ficava pensando no porquê de tantos cerceios. Tinha vontade de usar o mundo pela sua própria vontade. Às vezes tinha vontade de ser o mundo, e em outras, tinha vontade que o mundo fosse ela. Mas nenhuma das possibilidades parecia caber no mundo das outras pessoas. Carol via-as todas como pequenos bonecos, sempre repetindo as mesmas coisas, parecendo serem controlados por outros bonecos. Não conseguia entender qual era a graça da vida. Pelo menos não dessas vidas que as outras pessoas levavam. Entendia as dela. Brincar, pular, rodopiar e cair. Podia repetir tudo isso durante uma tarde inteira, mas sempre de maneira diferente. Não gostava da mesmice. Dizia que mesmice era coisa de gente grande, e que se pudesse, nunca cresceria, pois não queria ser a mesma para sempre. Quando falava isso sua mãe tentava lhe explicar:

— Carol, não é que as pessoas sejam sempre as mesmas, é que elas escolheram o que queriam fazer da vida.

E Carol respondia:

— Mas qual a graça de escolher o que ser para o resto da vida? Não é a vida uma desunião de ser e não ser?

Sempre que Carol falava essas coisas sua mãe ficava assustada. Não entendia como essas ideias malucas podiam sair de uma cabeça tão pequena. Mas como já pronunciei, Carol não era só pequena, era profunda. E a profundidade que ela possuía era como o oceano que cerca todos os continentes. Em alguns momentos parece que acaba, mas se olhar mais fundo, pode descobrir coisas ainda mais interessantes. E era o que Carol sempre fazia. Olhava cada vez mais fundo, cada vez mais fundo em si mesma. Parecia que olhava tão fundo que sumia de si. Mas logo depois reencontrava-se, e sumia novamente. Era uma sensação tão boa que Carol aprendeu a reconhecê-la em todos os momentos, e tentava fazer com que as outras pessoas também tivessem essa pontinha de sensação boa que ela sentia. Mas as outras pessoas não a entendiam. Sempre reclamavam dela, diziam que quando crescesse iria entender, mas que agora era só uma criança pequena cheia de ideias. E que ideias que Carol tinha.

Pensava que todas as pessoas poderiam ser o que quisessem, e quando não quisessem mais, poderiam ser outras coisas. Pensava também que ter opções é sempre importante, mas que fazer novas escolhas para ter ainda mais opções pode ser ainda melhor. Achava que 1 + 1 formava dois, mas que de vez em quando podia formar outra coisa. Gostava também de pensar que as pessoas não precisavam ficar presas no mesmo lugar, mas que era importante que ficassem se assim quisessem. Mas a ideia que mais preocupava sua mãe era uma tal de liberdade. Perguntava-se por onde essa menina tinha andando para pensar sobre essa tal de liberdade. Mas Carol não andava em outros lugares, andava em si própria, e por isso, andava em todo o mundo.

Carol ficava assustada quando pensava que as outras pessoas não pensavam em liberdade. Para ela era tão claro. “Ser livre deve ser a melhor coisa do mundo” pensava. E era mesmo. Mas ser livre quando criança é muito mais fácil do que quando adulto. E quando Carol percebeu isso, desatou a chorar.

— Mamãe, será que um dia vou deixar de ser livre?

— Não sei querida – respondia sua mãe, com ainda mais lágrimas nos olhos. Sabia que não tinha resposta para essa pergunta, mas era esse não ter resposta que deixava-a sempre confusa. Mas não era uma confusão qualquer, era aquela confusão de mãe, que sabe e não sabe, que quer e não quer, que pode e não pode, que dói e que dói ainda mais quando está ligada com os filhos. Nesses momentos as duas se uniam em um abraço apertado, Carol se aconchegando nos braços da mãe, e esta apertando-a como se não houvesse mais nada no mundo. As duas choravam, choravam tanto que nem sequer lembravam do dia, das horas e do tempo. Tempo este que para Carol passou voando.

*

Sentou-se por um instante. Passou as mãos nos cabelos, ainda encaracolados. Suspirou por um momento. Carol cresceu. Andava agora com roupas sociais e com uma pasta debaixo dos ombros. Tinha virado uma advogada, uma ótima advogada. Trabalhava em causas sociais, brincava com os moleques nas ruas, sentia-se alegre com o nascer do sol. Chegava cansada em casa. Sua mãe não morava mais com ela. Foi para o interior, descansar um pouco das grandes cidades e de suas maquinarias. Carol ficou. Tinha agora suas obrigações da vida de adulta, mas quando estava sozinha, ainda brincava, pulava, rodopiava e caia.

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Flávio Joni
Enviado por Flávio Joni em 18/04/2019
Reeditado em 18/04/2019
Código do texto: T6626513
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